domingo

A cena


Um gajo tem de ganhar a vida. Há para aí uma quantidade enorme de gente que não tem nada para fazer. Fica em casa e por melhor que seja, ninguém lhe dá trabalho. Há gente a mais, é o que é. Já se foi o tempo em que podíamos escolher. Mesmo quando isso tinha o seu preço. Mas, quando muito, as actrizes levavam na pita, dizia-se. Depois, lá vinham uns papéis decentes. Agora, só nos sai disto. O que explica porque andei num enredo… como chamá-lo!? A ideia, pelo menos de princípio, era fazer um filme de amor. Mas todo o amor ali era o meu.
Talvez não devesse dizer nada, talvez devesse deixar a cena a seco. Acontece que o que acabou por se passar é tão inusual que podíamos não estar preparados para reparar. Não acontece todos os dias. Dificilmente, alguém diria que o orgulho é a solução. Mas, naquela ocasião, foi o que se passou.
A cena, como se tornava evidente, não estava a resultar.
- Cavalga! disse o realizador irritado, Cavalga! Porra! Cavalga!
A intenção do realizador era mostrar o contraste entre a beleza e a impaciência da jovem e o ar frio do namorado, acentuar um possível lado cómico da relação entre os dois. Um interessado, ela, o outro, em absoluto, desinteressado. Um fruindo, ele, o ambiente permissivo da noite madrilena, o outro, ela, com alguma dificuldade em encontrar um rumo para a coca e para os copos que já ingerira.
Ao ouvir aquilo, ela parou. Saiu de cima do jovem, pôs-se de joelhos na cama, e virou-se para o realizador.
- Foda-se, Júlio, já viste a cara deste filho da puta!? Gotas de suor rolavam-lhe pelo corpo moreno e demasiado bronzeado. - Tu - virando-se para a assistente - o que estás à espera!? Não vês que preciso da toalha!?
Júlio levantou-se. - Acendam a merda das luzes! E tu, Francisca, deixa-te de merdas! É preciso mais!
- Merdas, Júlio!? Isto não é indiferença! Isto é de sonso! Não posso fazer mais com este sonso por baixo de mim!
A tensão crescia quando a assistente levou a toalha a Francisca. Francisca sentara-se na borda da cama. Começou a limpar-se com um ar fulo. Atrás de si, o actor abrira finalmente os olhos. Parecia divertido. Sorrindo, sentou-se ao lado dela e deu-lhe um toque com o cotovelo.
- Desculpa lá!
- Posso saber que merda se passa, Ernesto!? Perguntou Júlio ao pressentir o gesto.
- Queres mesmo ouvir!?
- Despacha-te!
- É rápido! Eu não aguento, é tão simples como isto!
- Não aguentas o quê!?, Júlio estava vermelho, as sobrancelhas cravadas como setas. És a porra de um anjinho do coro agora? Que nova maluquice vem a ser esta!?
- A minha cara, o meu ar, sei lá! Na verdade não sei como fico!
- Quando Francisca abana os seios em cima de mim, para aguentar, fecho os olhos, saio da cama, desço para o metro, é hora de ponta, dou um soluço com a multidão, entro, e, apertado, de braço no ar segurando a correia, sorrio; olho à minha volta e estou orgulhoso de ter comigo aquela nívea imagem.
Júlio reflectiu por momentos; depois perguntou-lhe: actor’s studio!?
- Actor’s studio!, assentiu Ernesto. Nesse instante, Francisca resolve intervir.
- Olha Ernesto, é mesmo assim, Ernesto, ficas orgulhoso!?
- É mesmo assim, Francisca.
- Tens orgulho!?
- Tenho!
Francisca sorri. - Então, não tem mal!
Júlio berra.
- Apaguem as luzes! Toca a voltar às filmagens!

(FM)

Os pés


Alvarinho odiava a escabrosa visão que os seus pés constituíam. Eram pequenos, peludos, algo papudos e de dedos tortuosos, proeminentes como os dos macacos, terminando em longas e grossas unhas amarelas em forma de garra a maior parte, os dois maiores em espátula soerguida, aparentando a ocorrência de um qualquer choque de placas, e os mais pequenos ovalados e truncados como as gavinhas dos hamsters. Não era que Alvarinho se apreciasse mais do pescoço para baixo ou, pelo contrário, deste para cima, sobrando sempre o problemático par de pés. Não, na verdade Alvarinho tinha um grave problema de imagem, de cima a baixo e para os lados, mas isso seriam outras tantas histórias que não se pretende contar.
Premente, premente eram os pés, mas Alvarinho arranjara-se de uma solução. Muniu-se de grandes quantidades de doces, fritos, massa e arroz, postas de carne, batatas e cerveja e tratou de engordar o corpo. Quando sentado, deixou de ver os joelhos sentiu-se pesadamente feliz. De modo algum podia ver os pés sem o auxílio de um espelho de corpo inteiro, coisa de que entretanto se desfizera, aliás como de todos os outros, não pudesse cair em tentação. Alvarinho estava muito gordo mas muito feliz, é claro que tinha que manter certos cuidados, mas, finalmente, aquele atroz exemplo da fealdade do mundo saía da sua vista.
Na noite anterior ao que viria a acontecer, Alvarinho deitou-se ditoso e com sono verdadeiro, recusando o tranquilizante habitual. Claramente, andava satisfeito consigo próprio e o whiskey e o policial bastavam. Quando no dia seguinte acordou, tarde na manhã porque fosse um Domingo, Alvarinho teve o sobressalto. Diante de si, ao fundo da cama, erguiam-se duas imensas e grotescas colunas, na sua horrorosa majestosidade, parecendo amparar o tecto. O susto fora tão intenso que só num segundo momento Alvarinho distinguiu claramente os seus próprios pés, agora agigantados, ali, diante de si, os dedos acariciando o tecto com constrangimento. Durante alguns segundos não deu sinal de si, o olhar preso naquela monstruosidade que eram os seus pés, agora desmesurados.
Pecado de vaidade, pensou Alvarinho e, agarrando um alfinete de gola da mesinha de cabeceira, espetou-se violentamente. Fosse qual fosse a sua intenção, no mesmo instante, Alvarinho esvaíra-se como um balão em gordos eflúvios ventosos capazes de abalar os candeeiros e arrastar cadeiras e outro mobiliário mais próximo. Alguns segundos depois estava como antes. Novamente magro, novamente os olhos presos aos pequenos pés papudos, lanudos de dedos disformes, mas ainda assim aliviado.
Foi então que teve a radiosa ideia de calçar umas meias.

Desde então, apesar das dificuldades da mudança de par a que acabou por estoicamente se habituar, Alvarinho é um homem feliz.

sexta-feira

Jogo de azar


Luísa convidara-me. Vamos passar o fim-de-semana junto à nascente do rio, queres vir, a Maria também vai, que te parece? Podias desafiar o Artém, ele gostaria, aposto que gostaria. Não a quis desapontar. Luísa é a ex mulher do meu melhor amigo, há pouco mais de um mês tinham-se separado e, claramente, ela tratava de atirar os dados. Mas porquê eu? Não seria a minha figura, sou baixo, os ombros pequenos, a barriga a ficar proeminente, a cara num emaranhado precoce de vincos, uma pele pálida e desanimadora, os olhos uns papos tingidos por uma vergonha muito antiga. Foi então que caí em mim. Luísa enlaçava um jogo de azar que incluía uma singular ideia de luto e, naturalmente, pensara em mim para jogar as cartas com Maria. O atrevimento de zelar pela ex mulher do meu melhor amigo nem me passara pela cabeça. Simplesmente, não me dizia respeito, mas acabei por ir, não me perguntem porquê. Às três horas da tarde estava à porta da Luísa, o Artém a meu lado a fumar um cigarro.
Chegamos tarde, já perto das sete, mas o calor persistia no limiar do infernal. Mesmo antes de se montarem as tendas, mergulhámos numa pequena represa natural poucos metros a jusante da nascente. Artém exibia a sua beleza eslava e chapinava a margem como um golfinho desenvolto e gracioso. Luísa, com a cabeça apoiada nas rochas e enfiada na água fria até aos ombros, olhava-o com admiração de fêmea enquanto Maria arrumava os sacos num socalco louro não muito longe, de onde nos podia ver, e sentava-se a fumar um Gitane. De vez em quando dizia-nos adeus.
Até que ponto Maria se aperceberia da sua situação frente a mim? Quantos de nós seríamos capazes de compreender que há coisas que nos obrigam a fazer certas escolhas em vez de outras e que toda a escolha tem consequências terríveis? Nessa noite, fomos a um bar junto a uma praia fluvial, alguns quilómetros a ocidente, um pré-fabricado em madeira avermelhada atravessado por uma parede de pedra virada para a água, com um espaçoso alpendre fronteiro, atacado pelo tempo e pela humidade. Não sei quem começou a beber demais, se eu se Artém. A certa altura, as miúdas continuavam sob o alpendre, engalfinhávamo-nos os dois, na praia, entre as raízes. Um jogo de homens excitados pela bebida. Estivemos que horas naquilo, isolados do mundo e sem que notássemos o tempo passar, Artém convocara-me para os meus quinze anos e eu estava feliz a rebolar na areia. Não assim Luísa, que nos olhava num misto de comiseração e nojo. Maria, essa, estava quase divertida, talvez considerasse o seu papel no meio daquilo tudo e isso, subitamente, se tivesse tornado um pensamento agradável. Quando voltámos, ensopados em suor, Luísa estava contrariada e quis conduzir, o que teve o dom de nos deixar mal-humorados durante algum tempo.
Luísa recolheu assim que chegámos. Maria, sentada à entrada da tenda, concentrava-se num livro, à luz de um candeeiro de pilha. Artém tirou do saco uma garrafa de gin que mergulhou na água fria e resolveu que faríamos uma fogueira. Já era bastante tarde quando conseguimos atear fogo aos lenhos. As miúdas dormiam a sono solto. Artém passou-me a garrafa ateada pelas chamas.
- Quem quer saber delas, se as apaparicamos querem logo decidir por nós, se não fazemos caso delas, amuam como crianças. Não respondi, ainda há um mês Luísa era uma peça importante num puzzle doméstico que também me envolvia. Acendi um cigarro e por um longo momento fiquei em silêncio. Artém, sobretudo, falou, de tudo e de nada, de vez em quando pregando-me um murro no ombro ou castigando-me as costas e rindo-se às gargalhadas. Por duas vezes, um possante chiu obrigou-nos a baixar o tom, desencadeando em Artém um chorrilho de impropérios, um tom abaixo. De qualquer modo, o diálogo não se prolongou mais do que a garrafa, enquanto um doce abatimento se apoderava de nós.
No dia seguinte, acordámos tarde. As miúdas já tinham tomado o pequeno-almoço e tomado um banho e Luísa quis regressar. Que não era aquilo o que ela tinha em mente quando sugeriu o fim-de-semana na serra era uma evidência. Artém sentou-se ao volante, Luísa ao lado, eu e a feia Maria no banco de trás. Mas a decepção de Luísa infectara o veículo e quando Artém, largando uma gargalhada, exclamou que tínhamos de repetir a luta de ontem, só eu é que sorri, quase a medo.
Já em casa, enquanto preparava uma bebida, dei comigo a sorrir de novo. A bela Luísa descobrira algo que todos os jogadores sabem, que normalmente se perde nos jogos de azar, e enquanto matutava nisto, saboreando a bebida, vinha-me à mente uma fogueira perdida na noite, reflectida numa garrafa de gin entre dois homens suados da luta.
Tínhamos que repetir aquela luta, poderosos e compassivos, competitivos mas amáveis. Era inevitável que o fizéssemos.

terça-feira

A velha


A camioneta apoderava-se da rua e revolvia-se em acessos de vigor e acabrunhamentos quase simultâneos como o resfolegar de um animal. Por um breve instante, Alberto era um ponto de repouso entre a azáfama geral, uma infracção às leis do movimento. Acabou de beber a cerveja e subiu. O resfolegar do animal subia de tom, dominando a rua.
Olha ainda uma vez pela janela. Como estaria a velha, como seria voltar a vê-la? Do lado de lá as gentes confluem e divergem ao encanto das correntes, ora distantes, ora tão próximas que, em estendendo o braço repentinamente, arriscaria a violência do embate. Abre a revista que comprara no quiosque para logo a voltar a fechar. Os seus olhos fitam com estupor o tejadilho. Tenta ver-se a si próprio de longe. De um outro, que o olhasse como ele olharia. Mas não sabe com que se debate quando é ele outro, mais sereno talvez, mais aquietado; e como se distinguiria ele ainda, olhando-se como se fumo e flutuasse assim como se fumo ou fosse tudo fumo? Não obstante, ali estava ele, quase repousado, o corpo no sintético do assento e a olhar-se de cima, a revista cravada entre os dedos.
A camioneta arranca num violento puxão e a concertação de sons e cheiros empurra com facilidade aquele colosso que galga os paralelos, enquanto a porta hidráulica contém o mais que pode o irremediável. Quer lembrar-se do primeiro impulso: não ir, não comprar o bilhete. E no entanto está costurado àquele bilhete; a necessidade explodia num galope.

Chegaria lá para as dez da noite. Desde a morte do velho que evitava visitá-la.  Desde que ressequida e arrastada saíra de casa, naquela terça-feira, perdera feições. Havia uma lembrança vaga, resumida, enganosa. Uns olhos azuis de todos os azuis. Como estaria? Tinha covas quando ria e umas mãos trémulas como cordas a verter do casaco. Um dia, escondera as jóias na sanita. Não eram muitas. Por milagre escapariam aos convulsivos ressaltos da água agitada. Por milagre. Não fora um canalha por não a ter visitado mais vezes? Sim, era um canalha, mas não a visitaria – limitaria as visitas à irmã. Quando se chega à situação da velha não se tem visitas. Mesmo que todos os dias a visitemos.
A camioneta era um miradouro para outra cidade onde a velha era digna de pena. Passara a vida a azucrinar-lhe a cabeça – não o amava, fora-lhe cravado na garganta; sua mãe assim quisera. Mas para o velho as coisas eram diferentes.

Alberto saía ao pai, tal como a irmã. O papá perdera toda a fortuna no casino. Mas não em qualquer casino. No casino que o papá empreendera ele próprio. Que se tornaria o gozo restrito de intelectuais de província, putas selectas e dançarinas espanholas ou ao contrário. Bebera e jogara até ao limite das forças e das posses. Gozara a última prata. E a mãe lá coseu os veludos vermelhos dos cortinados, com que vestiria as duas durante os anos que seguiram a desgraça. Algo bizarras essas efígies a que o veludo dos repetidos vermelhos vestidos não retirava o encanto que herdavam da mãe.
Antes moravam numa casa senhorial, sob a sombra dos castanheiros e das genealogias. Depois, já era pequena a casa e outra a cidade. Uma cidade maior. A casa ficaria ainda mais pequena, mas a cidade crescia. E ela apaixonava-se. O amado dançava maravilhosamente e tinha um humor elegante. E o velho a explicar-lhe o francês, a pedido da mamã, a escrever cartas apaixonadas ao amado, a escrevê-las como se lhe fossem dirigidas, a compor poemas que o outro jamais entenderia, a marcar-lhes os encontros que chorava, e ela achava-o ridículo. Mas era preciso que ela fosse feliz, sobretudo que não tivesse pena dele – sobretudo que não desse por ele. E o velho era por essa altura jovem - e o jovem começava a ser velho.

Que tanta dedicação tem merecimento, pensou a mamã, e vai e torce-lhes o destino, casando-os e selando o casamento com a sua presença para sempre. Casaram os três. Ele radiante e humilhado, ela prometendo-lhe a vida negra, de seus olhos azuis - a mãe chorosa e satisfeita, parecendo menos magra e não deixando ainda adivinhar o esclerosamento e a hemorragia final. Apesar da sua condição modesta, o velho era empregado de um grande banco, estava acima de remediado – o que garantia a subsistência dos três. Um filho recomporia o quadro, pensaram. Ou pensou a mamã. O filho, Alberto, nasceria num franzir de sobrancelhas, um aperto dos lábios e um gemido morto, tão lustrado das sanhas do materno como macilento, um quase-morto de abalar qualquer simbologia do primogénito. Tentaram uma segunda vez. Tiveram uma menina que saia da cara do pai e tinha os olhos da mãe. Ele seria de uma dedicação invulgar aos filhos. Ela carregava-os nos giros da ociosidade, era encantadora, plena de humor, fútil e infeliz. Agora ele morria, e ela a fazer o escarcéu. Havia aquele mal-estar inesperado que a privava de ar e do Majestic. E ele morria como vivera. Nunca levantando a voz, nunca ripostando, quem sabe compreendendo a sua culpa na dor que ela, brusca, cuspia e repisava num zunir contínuo, pesado, arrastado, a que ele anuía levantando e baixando os ombros e fechando os olhos, como se murmurasse entre dentes, esmagado por aquela pantomina azeda, perdoa-me, perdoa-me. E aquele amor que o dia-a-dia atordoante dos deveres calcina parecia sobreviver nos olhos do morto. Morreu sem, num arrojo de génio, cuspir o imenso quisto que lhe atravessava a garganta, lhe atravancava a voz, lhe provocaria o eczema nervoso, lhe derretera o peito de atleta. Morria sem que ela o perdoasse.

Embora muito passasse das oito ainda era dia. Da popa à ré as vozes retumbavam sem interrupção reunindo-se ao resmonear abafado da camioneta. De quando em quando, breves alterações de ritmo e nível. Aparentemente mudo, o cenário desdobra-se e rasga na direcção contrária. Casa, café, carro, carro. Carro, árvore, árvore. Carro, carro, carro, montanha, montanha atrás de montanha, montanha com casas, montanha com café. Vento. Desde a morte do velho que evitava visitá-la. Chegaria lá por volta das dez. Agora a velha enfastiava-se em casa da filha, contorcia-se do ócio a que a velhice obriga e para o qual ela não fora feita. O azedume colorira-se de mágoa. Insinuava-se, estudava as cenas de desespero em que a sua mente dava os últimos sinais de uma inteligência teatral, rica em indumentárias. E lacrimejava, e aquela jovialidade cruel que Alberto envergonhara, fazia agora pena na pele enxuta, pálida, nos olhos cinzentos, nas pálpebras engelhadas, nas pernas que titubeavam - no exílio que se lhe tornara a vida. Um bilhete para o inferno. E, todavia, naquela face de velha, ainda algo permanecia da beleza da juventude – algo que ela retinha furiosamente sob densas camadas de pó-de-arroz e rouge, como proezas de amor que a falta de amor envelhecesse. Como se, um dia, o não fazendo, a sua alma, ligada à terra só pela cor dos olhos, se desarticulasse do corpo e se enterrasse, sem um suspiro, no lacre do inferno. O velho morrendo vingara-se. Uma vingança seca, que ele certamente não desejava, mas de que a providência se encarregara friamente.
A velha agora morria, e ele ia vê-la morrer.

domingo

Nada de especial


Não estão a ver, mas a estrada vem a descer, passa por ali, quarenta metros abaixo é plana, depois sobe, íngreme, depois, sei lá, talvez uns cem metros, vira à direita e desaparece de novo no monte. Ela costuma sentar-se àquela mesa a ler, quando faz sol. Não passam muitos carros. Jipes, nem por isso; às vezes lá surge algum todo-o-terreno. Mas nunca vira um deles fazer o que este fez. Viu-o passar, um jipe branco, descer, depois subir e parar. A seguir, fez uma coisa estranha. Ficou ali, uns dez minutos, no meio da estrada. Ela fica a olhar para o jipe. A certa altura, o jipe arrancou e guinou para a esquerda e aos solavancos começou lentamente a subir o monte. Nunca tinha visto ninguém fazer aquilo, era manifesto mau senso. Mesmo com o terreno coberto de urze, dava para perceber a irregularidade, as rochas, as fendas no terreno. Mas, o jipe lá ia. Aos solavancos, calcando a urze.
Não sabe o que o fez inclinar para a direita. Virou lentamente, quase a não virar, acabou por virar, deslizou um pouco e ficou quieto de rodas para o ar. Não que ela fosse impassível ou indiferente às desgraças alheias, mas não sentira nada de especial. Não sabia porquê, não acreditava que pudesse ter acontecido algo de grave. O motor calou-se. Pouco depois, o condutor saiu pela janela, parecia-lhe aturdido.
Foi lá dentro buscar os óculos, volta até ali e senta-se de novo. Ele olha para o jipe. A seguir, dá um ligeiro abanão no carro. O carro deslizou ligeiramente. Ele baixa-se e espreita para dentro. Por fim, resolve deixar o carro em sossego. Olha para o cimo do monte, olha para baixo, virou-se, olha para ali.
Quando o viu de frente, pareceu-lhe familiar. Esforça-se por descortinar o que é. Quando ele recomeça a andar, tem a certeza. Era o médico da vila. Alto, cabelo branco, bem mais novo do que ela, talvez, cinquenta anos, desengonçado. Sorri. Há uma desapontarora imaturidade na cena. O que lhe teria dado para se meter em semelhante aventura!? Por momentos, vê-o caminhar monte abaixo. Não era fácil, por causa da urze. Encaminha-se para a estrada, desce, passa o plano, começa a subir. Está uma tarde cheia do calor seco que faz zumbir a serra e ele está ensopado em suor quando toca na campainha.
Foi lá dentro; pressiona o botão que abre o portão e volta a sentar-se na cadeira. Ele entra na quinta e subia já pelo empedrado. Quando a meio olhou para cima não a cumprimentou, e também ela não o cumprimentou. Agora, está ali à sua frente, cinco degraus de escada mais abaixo, e parece estar à espera que ela lhe diga qualquer coisa. Está manifesta e paradoxalmente orgulhoso. - Não sei se viu, perguntou. Ela responde-lhe com silêncio. O médico ficou ligeiramente confundido. Todavia, não desiste. - Capotei o jipe, acrescentou. Ela responde do mesmo modo; ficava a olhar-lhe para as frases, à espera, sem conseguir disfarçar alguma diversão. Ele calou-se. Olha para os pés, procurando o chão. - Desculpe, disse, sou médico… - Na vila, eu sei, disse ela. Ele tenta passar ao lado do sorriso. - Se não se importasse, desculpe… a Senhora, gostaria de usar o telefone, é que… Parou ao perceber que a sua atrapalhação a divertia. Ele depunha-se-lhe nas mãos e estava, enfim, verdadeiramente confundido. Ao vê-lo assim, ela tem vontade de brincar um pouco mais. Mas fica apenas a olhá-lo, comprazendo-se com toda a dificuldade que havia em ser espectadora.
Nunca soube o que se passara com o médico. Nem, a esse respeito, o que se passou consigo. Ainda hoje não sabe se o que fez, ou melhor, o que não fez foi acertado; sabe que estava alegre durante toda a representação. O que temos de ser, nada mais, pensou, e por vezes, quando era o que era, não era senão algo misterioso. E alongando as raízes, retorcendo a terra com os chinelos, elevou os seus galhos à luz como se nada se tivesse passado e pegou no livro que repousava na mesa.
Ele acabara por lhe virar as costas resignado e voltava à estrada. Ela ficava, sentada naquela cadeira, o livro nas mãos e o sol a morder no lajedo. Viu-o ainda desaparecer na distância, como se tivesse acabado de lhe atravessar os olhos, depois deixava de o ver.

(F.M.)

sexta-feira

Como anjos e demónios


Todos os Domingos de manhã o Sr. A. faz a marginal do rio com um saco preto à procura de histórias. Por vezes cai-lhe uma na cabeça, mas a maior parte das vezes não é assim tão fácil. De uma vez, estendera ele o braço para deter um papel que ameaçava no vento, e logo três lhe tombaram aos pés, atemorizadas. Eram histórias ainda pequenas, historinhas a quem sua palma, de tão sulcada e aberta, amedrontara mais do que aquela folha de jornal à deriva. Quando assim é, o Sr. A. deixa-as partir, não as quer nem tão pequenas, nem medrosas, mas custa-lhe sempre abrir mão da perfeição de filigrana das pequeninas.

Nos melhores Domingos, o Sr. A. apanha duas ou três histórias, mas esses são Domingos gordos, não raramente o Sr. A. regressa a casa tão aligeirado como saiu, o que lhe é desagradável. Também lhe acontece tropeçar numa história que já leva um escritor pela mão, e lá tem que se desculpar, o que também o aborrece, quase tanto quanto o ar portátil dos sorridentes escritores. No último domingo, acabara ele de caçar uma história corpulenta, quando abriu gulosamente o saco apenas para descobrir que já estava assinada. Como começasse a chover, o Sr. A pôs o saco preto na cabeça, certificou-se de que abotoara o sobretudo e foi para casa sem qualquer história e muito sisudo.

As boas histórias estavam cada vez mais difíceis de aprisionar e alcançá-las requeria cada vez mais astúcia. Talvez por isso, o Sr. A. andasse desalentado.

Naquele domingo, o Sr. A. ficara por casa, mais precisamente pelo jardim. O caçador recolector daria lugar ao agricultor, pensou, e, pazinha na mão, começou a revolver a terra preta enriquecida com composto, perfurando-a depois várias vezes em profundidade e deixando cair as sementes. Porque não tivesse senão seleccionado a melhor semente, não tinha centenas no saco, mas pouco mais de duas dezenas. Guardou meia dúzia para outra altura e fez a água circular lentamente entre as que depositara na terra. Em Novembro teria os primeiros frutos, quando as delicadas flores brancas do piripiri estoirassem em malaguetas verdes, pretas e finalmente vermelho ardente, depois, a partir de Março, uma cornucópia de histórias, do doce ao limão.

Agora, os Domingos de manhã encontram frequentemente o Sr. A. curvado sobre a terra do jardim, tratando de medrar o dia em que ela rebentará em histórias. É claro que, porque nos demais dias trabalhe numa repartição e nem tudo nasça da terra, o Sr. A. passara a fazer a marginal aos Sábados e estava feliz; o sábado não só palpitava inexplorado, como refulgia em histórias. Na verdade, o Sr. A. estava duplamente feliz, nunca, até àquela data, tivera Sábados e Domingos como se tem anjos e demónios.

Pede, meu amor, pede



Foi uma casualidade, continuas a pensar; queres com isto garantir que não houve qualquer premeditação. Apareceu-te, um dia, recomendada por uma amiga próxima e, por um desses automatismos das redes, adicionaste-a aos teus amigos. Sempre gostaras de conhecer gente e mais de metade desses amigos eram, como ela, conhecidos de conhecidos ou conhecidos de conhecidos de conhecidos, na prática, desconhecidos mais ou menos recomendados, já ninguém sabia por quem. Depois, a qualquer momento podias excluí-la, mesmo que então isso nem te passasse pela cabeça. Era mais uma face num livro de faces a que pouco te aplicavas. Era bonita, nisso repararas.
Não sabes quem começou, mesmo se continuas a achar que não foste tu. Talvez um comentário jocoso e depois uma troca de Smiles. A certa altura, noite em que não conversasses com ela não tinha cheiro a noite. Sobre o que se conversava? Sobre as mais variadíssimas coisas que podiam conversar dois completos desconhecidos, na presença apenas de duas fotografias: namoriscavam. Como dois animais apalpavam mutuamente terreno. Primeiro, soubeste que ela era casada, depois que era relações públicas numa renomada instituição cultural da cidade, finalmente, sem que soubesses porquê, percebeste que iria acontecer.
Uma noite, aconteceu. Xânia, como se estivesse escrito em qualquer parte, convidara-te para jantar. Combinaram o dia e a hora e ela confidenciara-te a morada. O marido, ao que supuseste, estaria em viagem de negócios, mas interessava-te pouco.
Três dias depois, pelas oito da noite, chamavas um táxi, davas a morada e deixavas-te surpreender.
À volta tudo era estranho, a ponto de não saberes de que lado estava o mar. Não conhecias aquela zona da cidade. As cidades haviam crescido desmesuradamente e um homem normal de pouco mais de trinta anos dominava no máximo quatro zonas da sua cidade. Aquela onde vivera a meninice, aquela onde agora vivia, eventualmente aquela onde trabalhava e, durante ainda algum tempo, a cidade divertissement, tal como estivera em voga cinco anos atrás, aos seus vinte e poucos anos. Depois dos quarenta, essas zonas tendiam a reduzir-se cada vez mais a duas e, com o tempo, a um lugar indistinto e pouco mais do que vazio. Fosse como fosse, ninguém conhecia toda a cidade. As grandes cidades tinham-se tornado incomportáveis e percorrê-las ameaçava tornar-se um projecto de vida.
Atravessaste a rua e tocaste. Num repente a porta da rua abriu-se com um silvo metálico e tu subias os quatro lanços de escada.
- Álvaro?
A porta do apartamento correu, esventrando a pequena sala de cima e o desnível que anunciava uma segunda horizontalidade, três ou quatro degraus abaixo. Xânia, atrás da porta, sorria. Ouviste Schubert e viste a mesa posta, as chamas dos castiçais a tremeluzir nos pratos e nos garfos.
- Encomendei a comida. Bebes alguma coisa?
- Bebo. Qualquer coisa, mas bebo.


Na última noite em que tinham conversado, ela fizera-se bebida, dissera que tomara dois Xanax e dissera que te faria isto e aquilo e mais aquilo. ‘Eu escolhi-te, fui eu que te escolhi’, disse por fim e tu expediste um duplo Smile. Cada decisão, és tu que a tomas, pensaste.
E ali estavas, os dois frente a frente, ela ainda mais bonita do que na fotografia, tu pouco mais novo e mais receoso e ela estendia-te um Gin com água tónica e tu olhava-la, na tua cabeça ouvindo-a ainda dizer aquelas coisas todas da outra noite. Lembras-te de beber mais Gin e que não jantaram até muito depois da meia-noite, mas não podes precisar como aconteceu.
A certa altura, Xânia sentou-te e começou a dançar e a dança era para ti, exactamente como dissera que faria. Pouco depois levantava a camisola, fazia-a passar sobre os ombros e deixava-a cair, dava uma volta e, ainda de costas para ti, desabotoava o primeiro botão das calças e só então se te virava, uma anca mais subida do que a outra, a mão direita repousando nas calcinhas de algodão, a outra caindo, encostada ao corpo. Estava agora a menos de um metro de ti, e os músculos retesavam espetando a pélvis. Na linha de algodão, à altura dos teus olhos, um pequeno maço acastanhado de notas de cinquenta tombava suavemente para diante.
- Toma. Quanto queres?
- Quanto queres, Álvaro? Quanto queres para me foder bem, querido? Cem, cento e cinquenta a hora? Pede, meu amor, pede.
Xânia fez tudo o que disse e pagou-te. Peça a peça. Pelo meio cearam-se carnes frias, tostas e bebeu-se um vinho branco, depois continuou-se no Gin, havia notas caídas pelo sofá e pela sala.
Quatro horas mais tarde, Xânia deixava-te usar o chuveiro, chamavas um táxi e ela levava-te à porta de baixo. Antes, apanhara uma a uma as notas - um total os seiscentos euros que foras obrigado a aceitar.
Dois dias depois, Xânia apagava-te da sua lista de amigos e nunca mais te cruzarias com ela.
Não te seria difícil voltar a encontrá-la, pensaste, sabias onde trabalhava, sabias onde morava, por maior que fosse a cidade, sabias onde a procurar. Mas honravas o desejo de Xânia, ela sabia, ambos sabiam, que não a procurarias contra a sua vontade. Até àquela tarde, duas semanas depois, em que, sem que soubesses muito bem porquê, resolveste telefonar para o museu.
- Não, ninguém com esse nome trabalha na instituição. Garantiram-te. Nesse momento, percebeste que não tinhas escolha, de nada te valeria enfiares-te num táxi e atravessar meia cidade, nenhuma Xânia te esperaria naquela morada. Xânia desejava desconhecidos, jovens desconhecidos a quem pudesse pagar e era tudo. E tu, tu já não eras um desconhecido.

quinta-feira

O três pastorinhos




- Sr. Joaquim, o senhor tem um cancro em estado adiantado, as metástases...
- O Senhor não gosta das coisas perfeitas - disse o Sr. Joaquim. -Tinha eu a minha casita junto ao ribeiro, as ovelhas, moía o meu pão e deu-me a mulher os três pastorinhos: Lúcia, Jacinta e Francisco. Mas o Senhor não quis que as coisas fossem perfeitas, Dr., e levou-me o Francisquinho ainda ele não tinha três anos.
- Lamento, Sr. Joaquim.
- Perfeito só o Senhor. Em sendo de outra maneira quem mais Lhe lembraria a perfeição? O meu Francisquinho foi por ajuda ao Senhor que ama acima de tudo os pequeninos e, em morrendo, os quer junto a si. Quando as minhas casarem...
- Gostava de as casar, Dr., mas não terei tempo, pois não?
- …
- ... assim tenha o Senhor presteza para um velho e será sem maior pena.
- Quis Deus que à minha Lúcia já lhe arrastem o pé, é boa rés o rapaz. O pai tem um café na vila e um antepassado andou por estes montes, era miguelista e comeu deste pão; um outro andou com o meu pai a passar republicanos fugidos de Espanha. A Jacinta, queira-a Deus, é pior que as cabras, mas é feita de miolo de pão. Não ficará por aqui, mais cedo ou mais tarde irá para a cidade; como uma borboleta procurará a luz. Não irá ter boa vida, tem demasiado de feitio e coração. A Lúcia sim. Há sempre uma primeira vez para tudo, não é Dr.? A Jacinta irá para longe e esta tosse não quer que eu veja netos. O Francisquinho herdaria o moinho e as leiras, parte das ovelhas; agora será o dote delas. Não é a tosse, pois não Dr., não se morre de tosse.
- A Lúcia tomará conta disto e da mãe, o rapaz não terá nisso prejuízo. O Francisquinho, de qualquer jeito, estaria em terras de França, como os que não morreram, quase todos. Ficará sozinha a mulher, mas é de têmpera, Dr. - ela velará pelo rio e pelo moinho, um rapaz para o pastoreio e para amanho das leiras conversa-se. A Lúcia não vai chorar, sai ao pai. É assim, não é Dr.? Deus saberá porquê e, certamente, velará pela minha Jacinta, para que cumpra o seu destino.
- Sempre verá a mãe nas festividades, não é? Ela sempre virá nas festas, não é?
- Sr. Joaquim...
- O Senhor não gosta das coisas perfeitas, Dr..

quarta-feira

Ovos


João César adorava ovos frescos à luz da manhã.
Pacheco acendia o primeiro cigarro e punha a sinfonia 7 de Beethoven a emergir lentamente do leitor, enquanto fritava os ovos. Levantara-se com as galinhas. Bebera a meia de leite carregada de sempre. O Xanax. Acabara de fritar dois ovos. Agora passava os olhos no ecrã, os jornais, o mail - o ritual matutino. As sensações fortes que electrizavam o mundo, àquela hora, inseriam-no num balão à prova de quotidiano.
Pacheco fuma um finex pelo caminho que faz a pé, tem quarenta e cinco minutos. Bebe as duas primeiras cervejas no café, deste lado da avenida. Entra daqui a menos de trinta minutos. Trabalha do outro lado da avenida, quase em frente ao café. O mundo é belo ou insuportável. Lá para o meio da noite, muitas cervejas e alguns finexes depois, o Pacheco dormirá como um anjo ou como um porco, independentemente do dia.
Um dos ovos cai, estatelando-se no frio do branco da cozinha.
Nessa altura João César desperta. O Pacheco morrera, ainda não tinha quarenta, fazia mais de seis anos.
Ele era o que restava do Pacheco, pensou, um Pacheco vivo e com quarenta e sete anos. Afinal, não há inúmeras variações do tam-tam-tamtam. As cores que usamos são variações de poucos naipes e é estreito o nosso espectro de gosto. A sinfonia nº 7 de Beethoven emergiu lentamente do leitor e ele abriu uma segunda cerveja. Depois ficou a olhar para os ovos.

domingo

Revolução e Exame


Bim virara a folha. Os vigilantes estavam atentos. Bim perguntou-se a que espécie de treino os sujeitariam. Virara a folha e os olhos dos vigilantes viravam-na com ele. Nada mais, nada menos. Nem um pestanejar a alijar qualquer carga, o levar a mão à cana do nariz, debaixo dos óculos, para coçar. Teriam família? pergunta-se Bim e olha de soslaio. Mas já retoma as folhas que virara. Sabe que a qualquer momento podem ler o que escreve, que a condenação definitiva pode a qualquer momento apeá-lo.
Ao toque, tinham soletrado o seu nome completo, o número que o definia administrativamente como individuo, registado qualquer coisa numa folha e indicado o seu lugar. A sua cadeira era a da ponta, junto à janela e à secretária. Esperou. Os examinadores demoraram as instruções. A sala era pequena mas com um amplo pé-direito, as carteiras apertavam-se. Enquanto os examinadores liam as instruções, a sua carteira permaneceu impávida e definitivamente ancorada ao soalho.
Bim voltava às folhas, escrevendo como dele se esperava e a cadeira adaptava-se à sua organicidade tão naturalmente como o faria a casca de um caracol. Os olhos sossegavam na quarta pergunta quando uma pequena multidão irrompeu sala adentro.
Viu-os, mudos por um instante, os olhos percorrendo a sala e logo eclodirem num berro junto, gregoriano. O regime caíra! diziam. Que o regime caíra!, berravam e saltam e cantavam e corriam e voltavam em festa agitada de crianças.
Os vigilantes demoraram-se alguns instantes parados, os olhos postos no examinando; dir-se-ia que nada tinham ouvido. Mas agora era esmagadora a sombra da sala e perna a passo os vigilantes acederam espreitar os corredores, primeiro um, depois o outro, e, como se uma coisa obrigasse a outra, deram-se à liberdade da fuga, não sem que antes pousassem nele os olhos uma última vez como se em despedida formal. Assim que saíram era como se a pele lhes pesasse menos, ninguém diria ‘eis dois vigilantes’, mas, nada mais certo, eis dois fervorosos apoiantes da revolução!


- O regime caiu! Ó homem, o que faz ainda aí? Os examinadores fugiram todos, homem, o regime caiu! - repetiu um dos intrusos, menos impertinente do que boquiaberto. O examinando olhou-o, estranhou a falta de presciência, mas não disse nada. Os vigilantes foram longamente treinados para aparecer e desaparecer e aprenderam com o diabo a piscar o olho, pensou o examinando retomando a escrita. Quando voltarem terei o trabalho adiantado, pensou, há uma certa margem de liberdade em ter o trabalho adiantado.

sexta-feira

Os olhos de Dores


- Que posso eu dizer, meu Deus? Ernesto, no seu traje de prelado, torturava-se frente ao crucifixo batendo repetidamente a cabeça contra o cepo. Quando fora chamado a depor, tinha a fronte vermelha e negra.
- A pergunta é clara, Sr. Doutor Juiz.
- Considera-se inocente ou culpado, a pergunta é clara, condescendeu aborrecido o juiz.
- Inocente, hesitou o réu. Inocente perante Deus. Ernesto não confiava na justiça dos homens, a sua inocência tinha outra origem, mesmo se as provas, entre os homens, pareciam esmagadoras. Sobre Ernesto pendiam as acusações de Abuso Sexual de Menores Dependentes e Actos Sexuais com Adolescentes.
Ouviu todas as acusações como se não lhe dissessem respeito. Só chorou uma lágima furtiva quando, exposta na sua inocência perante um mundo adverso, a sua menina prestou o seu desumano depoimento. Nessa altura tremeu, menos da afronta, do que de amor, e Deus era testemunha do amor de Ernesto.
Que nada daquilo era verdade, uma catadupa de invenções e dislates disse o seu advogado institucional. Todas as supostas provas, garantiu, ou não constituíam prova ou eram simplesmente circunstanciais, nada de sólido havendo contra Ernesto.
Era a sua vez de depor, Ernesto subiu ao palanque, jurou sobre o seu Livro e pousou as mãos no leitoril.
- Não me vou desculpar do que é indesculpável, sou Padre e fiz votos, sou homem e pequei. Tenho cinquenta e sete anos, senhores, estou velho e doente, precocemente velho e doente, e como a noite encosta a manhã, abri-lhe eu a minha cela e o sol quis que cegasse. Agora, pecador, estou cego por amor. Sim, eu amei essa criança, como um pai, como uma mãe, como a Deus, eu amo essa criança.
- Permito-me lembrar-lhe que acabou de se declarar inocente, marcou a acusação.
- Estou inocente.
- Continue, se faz o favor, disse o juiz.
- Nunca me passou pela cabeça. Acabava de sair de uma reclusão a que me submetera voluntariamente quando deparei com ela no jardim. Foi como se um diadema de luz irrompesse e coroasse a obscuridade singela da minha vida. Deus mostrava-se-me no que tinha de mais ingénuo, de mais fundamental. Era a filha de uma jardineira auxiliar da Câmara e cheirava ao eclodir das rosas. Comecei a vê-la aos fins de tarde, no jardim fronteiro à Igreja, onde tinha por hábito sentar-me a ler quando ainda havia luz ou simplesmente a olhar para as coisas, a não havendo já. Um dia, Dores sentou-se a meu lado interrompendo-me a leitura e perguntou-me o que fazia um Padre. Disse-lhe, lembro-me perfeitamente, que fazia de Pai e Mãe dos que os não tinham, como Deus o era de todos nós, que Deus era amor ilimitado da sua criação. Quis Deus, perdoe-se-me mais uma vez a expressão, que a mãe da menina bebesse bastante e ela se me fosse aconselhar mais do que uma vez. Recebia-a na Sacristia, onde podíamos estar a sós e falar prolongadamente, nenhum de nós tinha pressa. Confesso, gosto de crianças, amo-as como uma mãe ama as suas crias, como o irmão mais novo idolatra o brilho das irmãs. A Dores era uma quase mulher nos seus catorze anos, mas era o quase que me encantava, sobretudo o modo como me punha questões, a unha do anelar invariavelmente espetada entre os incisivos.
- Lembro-me do dia em que recebi a visita da senhora sua mãe. Como começou por se lamentar da sua condição económica e como rapidamente avançou para a minha suposta obrigação de pastor. Reconhecia eu ou não dotes especiais na sua filha e, se os reconhecia, quem se não eu poderia fazer com que vingassem? Ela a pensar numa pensão que lhe sustentasse o vício, eu a escrever para várias escolas sacerdotais, a pedir informações e inquirir a possibilidade da sua colocação, dados os escassos meios económicos e má influência familiar e a propor-lhe guarida. A miúda ficaria a viver sob a minha alçada, passaria a ser o seu tutor e encarregado de educação e, em troca, ela tratar-me-ia da casa e como tal receberia um pequeno salário que dividiria com a mãe como muito bem entre elas ficasse ajustado. Foi quanto bastou àquela megera para me vender a sua filha, meio prato de lentilhas. Não amasse eu tanto a pobre filha da bêbada, logo dali a teria escorraçado, como Jesus aos bufarinheiros no Templo.
- Permito-me recordar o réu de que não é da infância mais ou menos infeliz da vítima que aqui se pretende ajuizar.
- Meritíssimo! Sou inocente perante Deus, mesmo se aparentemente não perante os meus semelhantes. Antes do mais, é um juízo de carácter que me está a ser feito. Apenas por isso, Sr. Dr. Juiz, o ter de me alongar mais do que eu próprio desejaria. Pequei, admiti-o, fiz votos que quebrei; do que aqui sou acusado estou em absoluto inocente. Perante Deus omnipotente, Ele sabe-o, vez alguma, ousei depor-me ao serviço do amor idolatra que é o amor dos homens em desfavor da vontade de Deus. Todas as criaturas são criaturas de Deus e a Ele pertencem. Todas elas, simples criaturas entre as quais não difere humanamente, mas, a verdade seja dita, eu diferi. Sim, sou demasiado humano para o meu Deus, mas não pequei a este respeito e não estou menos inocente perante os meus semelhantes. O meu único pecado, senhores, foi um amor tão próximo ao de Deus que sucumbi, encadeado, a esse simulacro arrebatador - que ainda sucumbo. Eu amo-a, Sr. Dr. Juiz, a Dores é a minha menina. É-me indiferente o que a Lei dos homens de mim poderá fazer, mas não seria fiel ao meu Deus se não me defendesse do que a Ele acusa. Porque Deus é amor e eu amei. Amei a pedra no sapato e o bicho esquivo, a vida e a morte e a Dores e, acima e por dentro, o vulcão que é o amor de Deus insinuou-se entre nós como uma graça.
- Dores era ainda uma miúda quando a recolhi. Como disse, acolhi-a como empregada, mas era demasiado miúda, tive que lhe ensinar tudo, ao que ela invariavelmente juntava os joelhos e sorria, abrindo uma covinha do lado direito da boca. Tinha os olhos muito pretos e eu disse-lhe que eram amoras doces e que os frutos doces atraíam os animais. Eduquei-a no carácter e na mente educaram-na as melhores escolas, orgulhava-me dela, bonita e brilhante. Até que entrou na Faculdade.
- Sentia-me só e nem Deus era capaz de me acudir. Dormia mal, tinha começado a fumar e passava noites inteiras em branco à volta de um maço e de uma chávena de chá.
Um dia veio dizer-me que namorava e pedir-me que a bendissesse. Assim fiz. Não chegou a acabar a faculdade e eu não dormi dias a fio, tinha pesadelos como um pai. Visitei-a quase que semanalmente desde que casou, tem três filhos lindos que me chamavam avô Padre e que faziam com que as lágrimas me aflorassem os olhos. O mais velho é lourinho, os olhos muito azuis e rabino e inteligente como a mãe. Quis o pai julgá-lo antes de Deus e declarar alto e bom som que não era pasto de bastardos e que era eu o progenitor do Americano, como lhe chamava. Perdi a Dores, nunca mais me foi permitido ver os miúdos. Soube depois que o Francisco fora viver com um tio que partira para a América. Se senti saudades da Dores? Oh, meu Deus, como as senti. Eu amava-a como uma mãe ama os seus filhos, seguia-a como um pai e, benza-me Deus no seu eterno amor, queria-a como mulher, nunca deixara de a querer, mesmo quando a abençoava. Entretanto eu mudara de paróquia, mas por uma bizarra ironia o ciúme do marido reaproximava-nos e vi-me a contar-lhe de novo histórias para adormecer.
- É verdade que a beijei e que dormiu na minha cama em total comunhão, mas acaso a desflorei ou, pior, a violentei? Não. Nunca sobre ela exerci qualquer poder físico ou outro e nem uma só vez a maltratei, mesmo se apenas em pensamentos e omissões. Beijei-a como o pai e como a mãe que dela fui e, nos melhores momentos, brincamos como irmãos. Quando não era o seu igual nessas brincadeiras, era o seu tutor e o seu colo. E foi ainda a uma imaculada imagem que cheguei a recostar-me. A quem cheguei humildemente a beijar os pequenos seios, perfeitamente enamorado, como se fosse importante que houvesse uma última vez em que seriam beijados sem gula. Amamo-nos e fomos felizes, apraz-me pensar. Dei-lhe tudo e nada exigi. Que posso dizer sendo fiel ao meu coração e à minha crença? Antes de tudo o mais, que a amei, meu Deus como a amei!, depois que a amei à medida do meu amor por Maria, Mãe de Deus, que fui pai, mãe e irmão da Dores, que o seu bem-estar e felicidade eram os meus maiores e mais contínuos pesadelos e que chorei quando abalou, mesmo se era eu quem a ajudava a partir desejando a sua vontade como a minha fora.
Até que Dores desapareceu. Constou que se diluíra na cidade, junto ao delta do grande rio, perdida numa vida em que os papéis são tanto mais ingratos quanto mais intensos foram os nossos sonhos. Não sei, nunca mais a vi e os anos passaram amargos. Posso imaginar que não tenha sido muito diferente para ela. Mas, ao vê-la sentada junto à acusação, não posso dizer que a compreenda.
- O réu… preparava-se para dizer a acusação.
- O réu... levantou-se a defesa.
- Atenha-se aos factos, se faz o favor, retorquiu o juiz.
- Sr. Dr. Juiz, eu amo-a, hoje como então, valha-me Deus. Não se julga o amor que Deus nos dá. Perante o amor não há factos.

No seu lugar junto à acusação, os olhos de Dores incharam de lágrimas que se apressou a chupar com o lenço. A seguir, retocou a maquilhagem, endireitou-se como se nada fora e os seus olhos brilharam contra os dele.

quarta-feira

Raridades


Mais cedo do que tarde a onda regressa ao oceano. Capacita-te de que são raros os que a apanham de feição e, muito raros, os que a tendo de feição sabem dela fruir.

segunda-feira

Acontecimentos em Secretaria




O Sr. Nascimento era um funcionário de Secretaria, ausente de qualquer ligação à oposição de Esperança. Viera para Secretaria anos setenta, oriundo das colónias - um chapéu negro de abas largas e uns óculos escuros, monovolume, uma luzinha vermelha a ir e a vir, atrás de um guichet há trinta anos.
Zunzum, zunzum, a luz a luzir e a voltar, o chapéu negro de abas largas a cobrir o seu mutismo, a agilidade dos braços compridos e magros. Tanto quanto se sabia, o Sr. Nascimento viera das colónias de Secretaria e ingressara na função pública, ponto final.
De um dia para o outro, o Sr. Nascimento soube que tinha mudado a gerência de Secretaria quando ali foi chamado.
- Caro Sr. Nascimento, como sabe está em curso um processo de creditação global e todos os serviços estão a ser reavaliados.
Sim, ouvira dizer alguma coisa.
- Acontece, Sr. Nascimento que o senhor falha nos itens pontualidade e apresentação - e a luzinha a ir e a vir.
- Há também indícios suficientes para acreditar que roubou um roupão branco, nas Pousadas de Secretaria. Finalmente, terá prestado falsas declarações contaminando a impecabilidade do nosso registo. Sr. Nascimento, lamentamos informá-lo, mas está despedido.
O Nascimento não conseguia cerrar a boca, o queixo tombado à maça de Adão. Como é que sabiam do roupão? Ao lado daquela mísera culpa tudo o mais parecia irrisório e verdadeiro, mesmo se, por exemplo, não se recordava de prestar quaisquer falsas declarações e, para todos os colaterais, ali trabalhava há já trinta e cinco anos e tinha a folha limpa.
Só no dia seguinte, como o queixo regressasse a preensão maxilar, o Sr. Nascimento se apercebeu que nunca tinha roubado nenhum roupão branco, o que surripiara era claramente cor rosa salmão.

domingo

O Leiria



- Sempre à mesma hora, entendes, não há coincidência.
Alberto ouvia-o. Apreciava aquela hora e meia em que, de quando em vez, lhe era óbvio cerrar a boca e desimpedir os ouvidos. O Leiria continuava: - Eh pá, enche os olhos a mulher. Mas não julgues que seja fácil, lá porque há cães no meio.
- Estás a ver o cão dela, é um daqueles tacos felpudos e implicantes. A cadela sabe mostrar distância, eduquei-a, é mais humana. - Claro que ela reconhece um cão, mas prefere humanos, está ensinada. Mas o diabo do cãozinho dispara a ganir, perfeitamente possesso, aos pinotes.
- O bicho pressente o meu cheiro. Os homens têm o instinto atrofiado, pá, os cães não. Até que a cadela abre a boca - vê a boca da Setter, pá! - ia fazer ió-ió do cãozinho. Foi ver o taco enrolar às pernas da dona, um pompom entre os sapatos, as meias brilhantes a perderem-se acima do joelho.
- Um dia percebi que ela tinha carro. Vi-a a fechar a porta, depois de estacionar. Tinha no vidro de trás um espantalho em pano, sim deste tamanho, e esticou as mãos, ali a baloiçar. Que género de pessoa tem um carro com um espantalho de pano a baloiçar no retrovisor? Era mau sinal.
- A certa altura, pensei que eram duas. Um dia, à mesma hora, lá vi o cãozinho irritante, mas ela parecia-me mais velha. Tinha uma irmã mais velha, devia ser isso. Outro mau sinal. Mas enchia o olho, a mulher.
Claro que Alberto entendia, há quantos anos conhecia ele o Leiria? Desde o ofício às histórias com que mobilava um mundo perfeitamente praticável, mas de todo descoincidente com o do homem que passa na rua, tudo ele conhecia do Leiria.
- Sabes o que vou fazer, continuava o Leiria. Ando concentrado nisso. Tenho pensado muito. - Ela já reparou em mim, pá, e já percebeu que eu reparei nela. Mas o pompom quer-me à distância. Um dia surpreendo-a. Viro-me a ela no momento em que a besta atacar e digo-lhe: 'o seu cão é sagitário, não é?' - Entendes, 'o seu cão é sagitário, não é?' - Ora, se eu estiver certo e ela for... se ela não for sagitário não dá em nada. Mas, vê, e se ela for? Vai dizer qualquer coisa como isto: - O cãozinho não sei, mas eu sou sagitário, e naturalmente vai perceber que aqui há bruxo. Depois, vê-me a Setter, ela vai pensar que eu sou um mago rico, um bom carro, palacete, coisas dessas.


Alberto simpatizava com o Leiria. Com o seu modo, a sua condição de lado de fora incomparável, a viver uma salinha e quarto em penumbra contínua, acima de uma vintena de degraus rangentes e estreitos, em cotovelo. Chegara a dar aulas numa faculdade, o Leiria. Escrevera para um jornal de grande tiragem nos idos de setenta, dera aulas de guitarra clássica. Um dia tudo mudava. Deixou o trabalho e nunca mais trabalhou. Passara a ter o ofício, opção que fizera dele a personagem que se lhe reconhece no meio.
Tinha todo tempo livre e uma rigorosa rotina de solitário. Horas para atender, horas para manutenção, horas em que compunha, outras em que estudava e, ao fim de semana, se houvesse carro e dinheiro para dividir a gasolina e fosse meteorologicamente possível, galgava serras e penedos munido de duplo cajado, para fotografar pedras.
Álbuns e mais álbuns empilhavam-se por todo o lado, aos cantos, junto aos sofás e a encher a salinha, fotografias a pejarem as paredes, a mesa – pedregulhos, fragas, penedos, penhascos - milhares de rochas a penar para a objectiva, cada uma a exibir a sua formalidade, cada uma a sinalizar um percurso. Mas nada disso era o ofício. E quando as coisas corriam pior com o ofício, o Leiria vivia com uma mão à frente e a outra atrás. Tinha de cortar nos passeios de fim-de-semana e no café, no filme, na luz e na água. E o ofício ia de mal a pior. Já não era o único na cidade, estaria desactualizado, talvez, as redes também envelhecem. Fora o primeiro, mas o que é que isso interessava? Tinha uma clientela selecta e valia-lhe o jantar em casa da mãe, ele e a Setter.


- E o Xavier, houve mais alguma coisa, depois da cola na fechadura?
Uma noite, três anos atrás, Alberto conhecera Xavier B.. Tocara à porta e, como sempre afastara-se os vinte centímetros da praxe que o tornavam reconhecível pela frincha entreaberta do estore do primeiro andar, ouvira os passos na escada e depois os trincos e a porta abrir-se. Nesse minuto, surgido do nada, emergiu a figura alta e magra de Xavier que também entrava. Alberto, instruído pelo Leiria, subia de imediato para a salinha enquanto esse Xavier B. permanecera cerca de dez minutos à conversa no vestíbulo. Durante todo esse tempo, Alberto tentara perceber de onde e como surgira Xavier e, inadvertido, o encapuçado dos anúncios da Sandman de quando era miúdo, emergia. Quando o Leiria subira trazia quatro tijolos de quilo que tratara de arrumar antes de ir ter com Alberto e fora assim, pelo canto do olho, que ele ficara a saber quem era o fornecedor.
- Não te contei? Depois de por três vezes me ter posto cola na fechadura, deixou-me um cartaz à porta, uma folha A3, letras garrafais a marcador preto, tudo muito improvisado e cheio de fita-cola e sabes o que dizia? ‘Sabem quem mora aqui?’. Sim, exactamente isto, ‘Sabem quem mora aqui?’. Durante uma semana e pico, tive que acordar cedo. Ele punha-os de noite eu retirava-os de madrugada. Tirei quatro. Depois desistiu. Há uma ética tácita… há limites, e ele sabe.
- …e se quisesse deixar-me prostrado a um canto ou matar-me já o teria feito. Ele não é estúpido, é só aldrabão.
Um dia, insatisfeito, decidira simplesmente mudar de fornecedor e tivera para um mês, inclusive ameaças de denúncia. Alberto, acaso pensasse nisso, ainda se espantava. A verdade é que o Leiria aproximava-se dos trinta e cinco anos de actividade sem nunca ter tido grandes problemas. E os que tivera, como o assalto que determinou os alarmes que agora enchiam a casa, haviam sido rapidamente resolvidos com a expulsão de algum cliente dado a outros produtos do mercado e incremento da segurança. Uma coisa toda a gente sabia, o Leiria só negociava em tijolos, ocasionalmente psicadélicos com os mais íntimos. Em sua casa, na salita de uma só pequena janela, não se bebia e não se fumava, muito antes da vaga proibicionista.
- O Xavier aparecia sempre a cheirar a álcool, lamentava-se.
Tivera hepatite C e tinha o fígado de um morto a funcionar dentro de si. Mas acaso a atribulação diminuía o encanto descentrado do quotidiano do Leiria? Nem um degrau. O mundo do Leiria era exacto como um relógio e, contudo, à prova de realidade. Um mundo onde calhaus e penedos podiam aparecer e desaparecer por obra de espíritos e onde todos os encontros eram inconfidências mágicas e sinais. Passou pela hepatite e pela incorporação, como lhe chamava, como por uma proeza sensorial. Entretanto, engordara e o transplante tornara-o mais luzidio, as mãos papudinhas a terminar em dedos finos como patas de aranha e povoara os espaços entre as fotografias de pedras com recortes de super-heróis do Mundo de Aventuras, de que tinha os primeiros números.


A hora de Alberto terminara, era hora de ir passear a Setter. Descidos os degraus, o Leiria espreita pela fenda da caixeta do correio, move os trincos e entreabre a porta, olha à direita e à esquerda e volta-se para dentro.
- Podes ir.
Claro que Alberto entendia o Leiria. Infelizmente para o Leiria, aquela sua história era pouco povoada. Que mulher, em seu mais imperfeito juízo, abraçaria tão desconforme modo de viver?
- Da próxima contas o desfecho, disse-lhe Alberto.
Fosse como fosse, o Leiria caía sempre de pé. Ocorreria outro sinal, outra coincidência, outro teste, um afirmar recuando, e Alberto, na margem da margem, ouvi-lo-ia novamente pontificar na serenidade da sua divina, feliz anomalia.
Ainda ouviu os trincos fecharem-se. Depois entrou no carro.

quinta-feira

Lixo


Ela fitou-o indignada, com os olhos que Deus lhe dera como jóias fundas, negras, implacáveis. Ele limitou-se a devolver-lhe um espelho azul-claro, os lábios entreabertos, tensos naquele sorriso nem sim nem não, os olhos largos para que ela neles coubesse. Ela remirou-se, a sua imagem a revolver-se naquele claro de olhos e algo nela cristalizou como o gelo.
Ele não tinha esse direito, na realidade ele nada tinha de seu, e que ele envergasse olhos translúcidos de bebé que agora a reflectiam era uma desonestidade da natureza. Nesse momento, rasgou-o de cima a baixo.

- Não, ele nunca poderia ter-me dentro dos olhos, disse a desenhadora apartando o cabelo e deixando cair as duas metades da folha no cesto do lixo.

quarta-feira

Na pele



Tu conduzias-me de regresso a casa (tinhas umas boas ancas, e se curvavas eu morria). Deste-me boleia e, nada menos natural, casamos.
Agora, os meus pés de manhã vão à casa de banho com café nos olhos (e olho as mulheres que passam por nós em qualquer caminho) e noite após noite, sozinhos, bebemos as últimas luzes da televisão (mesmo se continuas a ser um par de pernas).
Na vida, mulher, as coisas aparecem e desaparecem. E rapidamente, o túmulo reflecte-se na pele.

segunda-feira

Os pássaros


Acordas, o sol funde o estore, ainda não são dez horas e as listas de sol queimam a pele e batem-te nos olhos desenhando uma faixa de fogo. Bebes o café e abres uma embalagem de salmão fumado que entremeias com uma cerveja. Os pássaros esvoaçam em redor, chilreando. É sábado, até segunda-feira. Acabaste de te recostar na cadeira. Nesse preciso momento toca o telefone.
- Podes vir cá?
- O que é que se passa?
- Vem cá, é melhor vires cá, podes vir?
- Claro, Vico, vou tomar um banho rápido e sigo.
Tomas um duche e vestes-te rapidamente. Estás preocupado, sabes que é de estar preocupado. Eram sarilhos, sempre que ela telefonava. Agora era o Vico, a voz transtornada a esforçar-se por ser tão comedida como a do adulto que ele sentia que começava a ser. O carro voou-te e em menos de quinze minutos estavas a bater à porta.
- A tua mãe? Ainda mal pronunciaste a última palavra, ela acode-te meia ainda na sombra mas dirigindo-se-te e para a luz. - Que aconteceu Vico? Vico, Frederico de seu nome próprio, encolhe-se para a sombra. - A mãe, tratas dela? Se houver alguma coisa telefonas?
Ela encaminha-se silenciosa para o portão cingindo o casaco. Tu fazes uma festa rápida no cabelo de Vico e segue-la. Por debaixo do casaco, imitando pele de raposa, enverga umas calças de pijama muito curtas de terylene azul-claras e meio rasgadas e umas texanas calçadas à pressa.
- Que se passa desta vez, Luísa?
- Já não aguento, Álvaro, e não é desta vez. Já não aguento.
- Por favor, Luísa, o Vico decerto não me telefonou …
- …para que eu te dissesse que já não aguento. Continuas o mesmo. Queres que te diga o quê? Porra, Álvaro, porque não me abres a porta do carro e te calas? Calaste-te e abriste o carro, ela entrou, tu, sem fechares a porta, sentaste-te a enrolar um cigarro.
- Ok. Já estamos no carro. Vais contar-me o que se passou?
- Podes deixar-me numa pensão?
- Luísa, estás completamente bêbada e são apenas onze e meia da manhã, as pensões são para se dormir, não têm matiné! Luísa tinha os olhos como insectos vermelhos, tinha chorado e os olhos cuspiam pelos vasos um vermelho que lhe ameaçava as pupilas. Tu acenderas o cigarro, fecharas a porta, rodaras a ignição e começavas a descer lentamente a rua onde estacionaras.
- Não te levo a pensão nenhuma, vens lá para casa. Agora, vais-me dizer o que aconteceu? O Vico telefonou-me…
- O Vico é um miúdo maravilhoso. Luísa desata a chorar, aquela cara bonita de olhos verdes era um destroço. - Andamos à estalada.
- Tu e o teu marido, num sábado de manhã? Não gostam de televisão?
- Desculpa. Vamos para minha casa. Lá contas-me.
- Não queres antes ir beber uma cerveja?
- Tenho cerveja em casa, aí umas vinte, chegam?



Abres a porta do frigorífico e tiras duas cervejas, ela senta-se junto ao estirador, a olhar para os papéis que ali se atafulham. Tem na cara marcados quatro dedos, uma nódoa negra do lado oposto da boca e um pouco de sangue no lábio inferior.
- Não tens antes cerveja natural, é que eu já não faço digestões normais. Há já uns anos que nada é normal comigo.
- Queres contar ou queres beber?
- Quero beber.
Luísa era uma mulher lindíssima, uns olhos verdes enormes, o cabelo quase todo ainda preto, apesar dos seus quarenta e três anos, e que bebia em demasia. Mas quem eras tu para a julgar? - Foi por gosto, a trolha? Inquiriste divertido.
- Vai-te foder, Álvaro.
- Ele era o homem perfeito, lembras-te com certeza. Ao contrário de mim ele era exemplar!
- Ele é exemplar, Álvaro. Eu não sou exemplar, não saio à mãezinha dele, não faço o que a mulherzinha dele devia fazer, percebes? O problema, desta vez, sou eu. Eu não consigo cobrir tudo o que ele simplesmente não faz.
- Ouve, tu já não és casada comigo, na altura era eu quem não era perfeito…
- Foste tu…
- Por favor, Luísa. Desta vez o que é que ‘fui eu’! És capaz de me dizer? - Porra, Álvaro, tu puseste-me a beber. - Ninguém põe ninguém a beber, Luísa. Foi por eu beber que nos separámos, recordas-te? O pugilista não bebia, era perfeito. - Quem ganhou? Aposto em ti.
- O Vico apartou-nos, eu desfazia-o, vontade não me faltava. Foi para o quarto. Foi quando o Vico resolveu telefonar-te.
- Estás com um péssimo aspecto. Não deves beber tanto.
Luísa sorri e abraça-se-te. - Olhem para o pregador! E depois a choramingar. - Ele não ficou a rir.
- Vou fazer a cama. Mais essa e vais descansar, estás precisada. Quando estiveres descansada decides, ou ficas ou levo-te aonde quiseres. Luísa acata. - Há muitos pássaros por aqui, nota.



Passa das duas da tarde, Luísa deitou-se e tu tratas de tranquilizar Vico.
- O teu padrasto?
O pugilista não era má pessoa, na realidade era advogado, trabalhava numa empresa que falira e agora no escritório de um tio onde ganhava muito mal. Na verdade, nunca o imaginaras a levantar a mão fosse contra quem fosse. Vico gostava dele e ele era um melhor pai para Vico do que tu alguma vez foras. De certo modo, mesmo se nesses momentos o desprezavas, chegavas a ter pena dele, conhecias Luísa demasiado bem. Não que o senhor perfeição fosse assim tão perfeito, não era, ninguém é. E sabias que Luísa tinha razão em tudo que lhe apontava, sem ela a casa afundaria lenta e irreversivelmente, por simples inércia. Não deixava de ter a sua piada, vê-la obstinada em salvar o casamento depois de explodir com ele.
- Não saiu do quarto. E a mãe?
- Ela logo volta, volta sempre. Em todas as famílias, Vico, há alegrias e horrores, já começas a ter idade para perceber isso. Agora deixemo-la dormir, Vico, ela vai precisar muito dos teus abraços quando voltar, não te esqueces de a abraçar muito?



Olhas para o relógio grande da cozinha. São cinco e vinte, o sol agora bate do lado ocidental ameaçando inundar a cozinha e a sala. Luísa ainda dorme. Abres um pouco as portas de vidro e baixas os estores, há uma brisa que circula, mesmo se o dia permanece quente, o chilreio dos pássaros entra fresco com a brisa. Tudo começara na véspera. Já a noite deveria ter perdoado muita coisa quando a manhã te surpreendeu. E que tinhas tu a ver com tudo isto? Sim, era uma boa pergunta, infelizmente uma para a qual não tinhas nenhuma boa resposta. Havia Vico, um filho em comum, mas a verdade é que acontecesse o que acontecesse ela chamava e tu ias, telefonava-te e tu esmorecias, insultava-te e tu desligavas-lhe o telefone para logo voltares a atendê-la, sabendo que era ela ainda, tão bêbada como antes, certamente mais.
- Tu, meu filho da puta, tu nunca gostaste de ninguém. Nunca quiseste conhecer-me, queres é que te deixem em paz, mas eu estava feliz e em paz e tu vieste e casaste comigo.
Eras uma besta, não discordavas, mesmo se não te fazia mais feliz. Não mudaras muito, entretanto. Mas porque carga de água tinha ela que te telefonar para to recordar, sempre que estava com os copos?
Uma vez, disseras-lhe que ias deixar de lhe atender os telefonemas a partir do meio da tarde, o que ela não te insultou. Que bêbado eras tu, e tu reconhecias, que sim, que era verdade, mas que não lhe telefonavas a destratá-la sempre que bebias. - Luísa, dizias-lhe, mata esse Álvaro que te fez tanto mal. Não será agora que irei surpreender-te e, a ti, a minha memória faz-te claramente mal, faça eu o que fizer.
Abriste mais uma cerveja e enrolaste um charro. Estás de novo na varanda e o odor mesclado das últimas flores do jasmim e das primeiras glicínias atordoa-te. Súbito, os pássaros desapareciam, o ar acinzentara-se coberto de nuvens pesadas e ameaçadoras e só o planar das gaivotas garantia que o mundo não ia acabar.
Foi quando te levantaste, para ir procurar outra cerveja, que a viste. Acabara de acordar, o cabelo enredado, os olhos a pesarem no rosto como bolas de ferro ainda quentes, as pálpebras coladas, na mão uma cerveja. Apoiava-se na estrutura metálica das portas de vidro e olhava-te.
- Bem disposta? Há café, tostas, queijo, salmão fumado e ovos, o que vai querer a nossa bela adormecida?
- Por que é que não deu certo?
- Café?
- Café. Eu sou maluca, não sou?
- Com tostas?
- Apenas café. O que é que tu pensas de mim?
- Tento não pensar, mas tu não deixas, sorriste. A seguir desaparecias na cozinha e voltavas com dois cafés mais um prato com queijo e tostas.
- Falei com o Vico. Que vais fazer?
- Vim estragar-te o fim-de-semana… posso tirar outra cerveja?
- Há quem goste de vidas coloridas, moi, eu estava de calções de praia e boné a bebericar uma cerveja na varanda num sábado morto. É claro que podes, e é claro que estás a beber demais e é claro que a minha tranquilidade se foi, que mais queres que diga? Porque é que vocês andaram à porrada?
- Nada. Sabes como é. Luísa manipulava uma bonequinha de plástico articulada que tinhas na estante, dez centímetros de gente, tentando sentá-la na pequenina cadeira de verga de escala aproximada que também ali estava. Lá equilibrou a boneca e torceu-se, pousando finalmente os olhos em ti.
- Não te preocupes, sabes como é, eu bebo a minha cerveja e vou-me embora e tu voltas a fantasiar-te.
- Sei como é? Não, não sei como é. Porra, Luísa, estou eu sossegado a coçar as virilhas e o Vico telefona-me aflito e estás aqui e não há nada e acabas de beber a merda da cerveja e voltas para casa, tipo vou mijar e venho já? Merda, Luísa. Isso não é amor, isso é doença.
Ela odeia-te por isso, vês-lhe nos olhos. E, no entanto, não fora ela quem, mais do que uma vez, te dera a entender já nada existir entre ela e o pugilista? Houvera pelo menos três amantes; o último, o psiquiatra. Mas até tu percebias que ali havia algo inexplicável, estavam presos um ao outro por uma promessa de sofrimento.
- Que sabes tu de mim, diz, que sabes tu da minha vida? Luísa tem o dedo indicador em riste à frente do teu nariz. - E se eu te disser que ele não se arranjaria para viver sem mim, que onde tu vês a doença eu vejo um futuro preso das minhas mãos. Que sabes tu de nós?
- Nada, Luísa, nem quero saber. Simplesmente, não te quero ver a lisonjeares-te com os teus sofrimentos como os velhos.
Não conseguias evitar sorrir quando a vias amparar o futuro como uma preciosa relíquia. Em matéria de futuro, a presunção não parecia ter limites. A ti restava-te continuar em frente até um dia parares sem que chegasses a lado algum, sem que vencesses fosse o que fosse, a não ser o próprio tempo. Mais cedo do que tarde a onda submergiria no oceano, de um modo ou de outro.
- Quero lá saber do amor, Luísa, vê se percebes, quero apenas que esqueças de uma vez que eu existo. Batam-se, matem-se, mas deixem-me em paz. Começas a parecer a Laura!
Recebes um par de estalos.
- A puta que o pariu, percebes? Diz-te ela, está sobressaltada, os olhos enormes fitam-te, cheios de um ódio imenso. Sem que possas dar-te conta dos teus movimentos, levantas a mão, mas conténs-te no último minuto. Estás a ficar velho, a tua mão baixa, lassa, e abres o frigorifico. Retiras duas cervejas, a tua vida vai continuar depois disto, é o que sabes do futuro; do amor sabes ainda menos. Passas-lhe uma e sentas-te no estirador a enrolar um charro. - Foi assim, a anterior? Desataste a cascar-lhe por água vai?
- Foda-se, Álvaro… A Laura? Comparas-me com a Laura?
Laura, tanto quanto agora interessa, era uma irmã mais nova do pai de Luísa, uma mulher hipocondríaca, mergulhada em comprimidos, mais tarde também em álcool, a viver sozinha, abandonada pelos filhos e que periodicamente telefonava aos irmãos que ainda lhe atendiam as chamadas, a pedir diferentes somas de dinheiro. É o suficiente para se perceber que foras infeliz no comentário, não para apreender toda a intensidade da dor nos olhos que Luísa te voltou.
Sempre que aparecia, Luísa, trazia consigo um sem-fim de esperanças como flores secas, como se te pedisse que as defraudasses uma a uma. A vossa relação não era mais simples do que a deles. Ela continuava a procurar-te, vá Deus saber porquê, e tu insistias em a amesquinhar. No meio de tudo isto, duas certezas tu tinhas. Sabias que a amavas. Compreendias que não podias deixar de a ferir.
- Tu sabes o que quero dizer, Luísa. Não te quero comparar à Laura, apenas talvez te queira feliz e não…
- … neste caminho que achas que vai dar à Laura!
- Não tens de me ter sempre diante de ti, não sou o teu gémeo. Como tu dizes, nunca gostei de ninguém e nunca te quis conhecer ou fui incapaz de o fazer. Sou uma besta, estás farta de o dizer, e, em matéria de relações, tal como o pugilista ou pior. Mas não tenho que dar a outra face, Luísa; estamos a ficar velhos para isto.
- Dares o quê? … Os olhos dela fuzilam. - Eu não sou o teu bode expiatório, quem julgas tu que és para poder julgar-me?
- O gajo em cima de quem tu cais? Que queres dizer com bode expiatório, Luísa, este diálogo é de loucos. Vocês batem-se, eu vou-te buscar e tu vens a minha casa dizer-me que eu faço de ti o meu bode expiatório?
- Estás a dizer que eu estou louca, é isso?
- Não, não estou a dizer, tu estás maluca e ponto final ou vais bater-me de novo?
Tens vontade de a abanar, de a abanar até que serene, mas sabes que isso não é possível, Luísa, bêbada, é como um vulcão, a raiva só se extingue quando toda a matéria calcinável foi vomitada, aí desata a chorar. Desistes.
Luísa deixa tombar a cabeça sobre o teu peito, a tua inabilidade para amparar a dor do outro torna-se convincente. Batem as dez e restam duas cervejas e o teu mundo bóia em contradições.
- Tu, ao contrário dele, nunca me amaste.
- Também nunca te bati. Queres que te leve? Não há nada mais que lhe possas dizer.
- Não.
- Se quiseres podes ficar, já conheces a casa.
- Não, vou para casa. Vou tentar esquecer-me disto tudo. Fez uma pausa para acender um cigarro. - É sempre um erro vir ter contigo.
- Então fica, peço-te, já é noite e olha para ti.
As calças de terylene azul-claras, demasiado curtas e rasgadas sobre as texanas, o casaco de imitação de pele de raposa apertado para esconder o top cor do céu do mesmo pijama, o cabelo desgrenhado apertado num nó, a cara deslavada e os olhos vermelhos, injectados, pejados de pequenos insectos de sangue, as olheiras empoladas como beringelas anãs, a cara marcada, o lábio ferido, Luísa, na rua, naquele aspecto, não enganaria ninguém e custava-te antevê-la a calcorrear as ruas naquele estado. Já não és casado, mas também já não és um solteiro. Tens preocupações de casado, sentes-te a tê-las… Ela ri-se-te.
- Há pessoas que decidem a sua infelicidade e assim se tornam felizes. Só te quero feliz. Abraçaste-a com intensidade e deste-lhe um beijo na testa.
- Sabes que desta vez vou ficar até ao fim, não sabes?
- Sei. Não te percebo, mas sei.
- Obrigado. Eu… tu sabes como é. Vou.
Quem realmente, naquele momento, iria atravessar-se-lhe ao caminho? Ela decidira e também decidira que nada lhe podia acontecer, Luísa decidia tudo e, mais uma vez, teria razão, mesmo que a não tivesse. Ela iria, do mesmo modo que ficaria, assim o decidisse.
- Dá-me uma passa. Já te disse que o tempo não passa por ti?
Fumou-te meio charro, acabou uma última cerveja e rasgou meia cidade a pé naquele estado andrajoso e determinado que conhecias dos ressacados que desciam a rampinha como se uma força imparável os movesse e, caso resolvessem parar, os atropelasse. Foi a melhor comparação que te veio à cabeça. Também ela continuava a rapariga cheia de garra porque te enamoraras.
- À sua maneira, ele ama-me. Estou certa disso.
- Não é má gente, o pugilista.



No dia seguinte tinhas duas mensagens. Uma marcava as oito horas e dizia: ‘Bom dia. Já estou nos meus passeios matinais. E tu pregador?’. A anterior era de Vico, e dizia apenas: ‘Mãe bem. Bjs’, marcava a hora a que ela chegara a casa. Pegas nos comprimidos, levas o café para a varanda, ajeitas o guarda-sol e recostas-te. De repente, soergues-te e desligas o telemóvel. Voltas a sentar-te. Levanta-se uma brisa e sentes na cara o cheiro batido do rio e do mar. Ouves Torres aLx crepitar e surge-te entre outras imagens a imagem de Vico. Voltas a ligar o móvel.

terça-feira

Um fundo louco de sirenes


Era a voz da número três, a mãe mãe, mãe de ofício alargado que cuidava filharia, qualquer coisa que com menos de catorze anos revolvesse no pátio do recreio. O Monhé cuspia-lhe as ordens e os afagos, mas ela era o eco que o queria imaculado, tirado o rabo do saibro, jamais na boca as pipocas do ranho.
- Olha que te sujas Alberto. - Tira a mão da boca, Alberto, queres ficar com a barriga a doer? - Anda Alberto, chega-te para aqui, para o meu pé, comporta-te, sê um homenzinho. Cheirava a medicamento e creme, a mãe mãe, à sua volta instalava-se um hálito húmido de claustro.
Súbito - Monhé ergueu muito os braços como se procurasse melhor ilustrar o acontecimento -, ouviu-se um assobio de ar, depois um estatelar, cabum, qualquer coisa que caía, talvez um cofre-forte como nos desenhos animados, um grande vaso de barro, a gelosia laxa da varanda, qualquer coisa. E ela, a mãe mãe, num piscar de olhos, ali reduzida a uma lâmina bizarra, pintalgada a vermelhos sujos, a cinzentos de massa encefálica, os dentes cerrados, como grades que protegessem o rosto da deformidade total. A número três, afiançava Monhé, fora literalmente alisada por uma varanda, sim uma varanda inteira que inclinara a pique. Espavoridos, os pássaros tinham levantado um voo tão agitado como eficaz, pondo-se razoavelmente ao fresco dos humanos assuntos.
Ainda mal terminava o Monhé a sua narração, já se ouvia, alteando, a voz da número três, a mãe mãe, tão espavorida para cá, como o voo dos pássaros para lá longe. Atrasara-se quatro minutos, foi quanto bastou. Monhé, absorvido, continuava a olhar o que restava da mãe mãe, as cuecas carregadas de saibro e raspava tranquilamente as pipocas na língua. Ao fundo, começara a ouvir as sirenes. Até que a mãe mãe o puxou por uma orelha, despertando-o para o eterno retorno das aulas, e à chapada lhe esvaziou o nariz de dedos.

Ao Sr. T., agora quase nos cinquenta, ainda o espantam as recordações, como a todos os velhos recentes. E entre todas a expressão inocente de Monhé sobre um fundo louco de sirenes.

domingo

História com o Mercedes castanho


- Esse carro é meu.
O gajo, a perna esquerda dobrada para trás, mexeu os olhos sob os óculos escuros e fixou-o por um segundo sem se desencostar da parede.
- Quero-o, e apontou para o Mercedes 220D, castanho.
- Vai-te embora, velho.
- Eu compro-te o carro. Deste dez gramas por ele. São quinhentos euros. Pega. Dá-me as chaves.
O outro continuou sem se mexer. Ele estendeu-lhe as notas.
- Estás parvo ou quê, velhote?! Põe-te mas é a andar, a menos que queiras que eu te ajude.
- Quero o carro. Eu dou-te os quinhentos euros e tu dás-me as chaves.
O gajo desencostou da parede e acendeu um cigarro, enquanto olhava o velho com interesse. Tinham mais ou menos a mesma altura, mas ele era mais pesado. Olhou para os outros, todos os olhos estavam postos neles. Transeuntes passaram quase pelo meio deles e um autocarro surgiu na ponta da curva fazendo chiar as rodas.
- Queres levar o carro, velhote? Quinhentos não chegam.
- Dou-te quinhentos.
O outro encostou-se de novo à parede, as mãos metidas nos bolsos das calças. Ouviram-se risos, depois ouviu-se o silêncio nas mesmas bocas.
- Dou-te quinhentos… ou isto. Os seus olhos incendiaram-se numa expressão de aversão e, grotesco, o orifício prateado da velha Walther do exército brilhou na direcção do outro. - … e tu dás-me as chaves, de uma maneira ou da outra.
Os óculos escuros imobilizaram-se-lhe. O orifício da pistola ainda lhe apontava o peito e impunha um desusado silêncio à sua volta. Endireitou-se e a boca torceu-se-lhe num sorriso rígido, mas divertido, o olhar fixo, enquanto metia a mão no bolso. - Pega as chaves, velho, e guarda essa coisa. Ele, sem baixar o cano, passou-lhe as notas.
- Não voltes a fazer isto. Pode-se morrer disto!
- Da próxima vez, não virei para falar contigo. Já matei gajos melhores do que tu.



Passou no apartamento para guardar a pistola, verificou pela última vez o que estava dentro da mala e do saco de viagem, fechou-os e meteu-os na mala do carro e dirigiu-se a casa da ex-mulher. Luísa estava no jardim. Atravessou a casa de um lado ao outro e pela porta vidrada da sala avistou-a sentada num dos bancos a ler. A luz das lâmpadas agasalhava o céu e o jardim quase parecia encantado. - O João está cá? Luísa levantou os olhos do livro. Estava corada. - Não podes entrar aqui como se fosse a tua casa, Ernesto!
- Onde está o João, Luísa, só quero falar com o João.
Luísa deixou-se cair sobre o banco. - Está no quarto. Aconteceu alguma coisa?
- Nada de especial, não te preocupes, só preciso de falar com ele. Não te preocupes, a sério.
Voltou-se, atravessou a sala e subiu ao quarto do filho. Bateu na porta. João estava deitado na cama, de lado, as costas voltadas para a porta. Chamou por ele e o filho ergueu a cabeça que logo lhe descaiu para a almofada. Abanou-lhe o ombro e chamou outra vez. O estojo de inox estava aberto sobre a cama e a colher e a seringa pousadas na tampa caída para trás. Havia gotas de sangue no edredão.
- Vai-te lavar, disse-lhe. Vens jantar comigo.



- Como é que encontraste o Mercedes?
- Sei onde vais às compras. Dei umas voltas e tive sorte.
- A mãe não me deu dinheiro.
Ernesto olhou o semáforo parado no vermelho. A mãe não me deu o dinheiro, repetiu para si mesmo. E aqueles gajos que pediam nos semáforos, a quem a mãe não dera o dinheiro? Ernesto tentava passar à frente, saltar a pés juntos aquela ferida. O carro seguiu na direcção da Baixa. João, sonolento, olhava em frente, as pálpebras inchadas, lavradas de olheiras avermelhadas.
- Estou reformado. Hoje, fui pela última vez ao QG. - Vou deixar tudo. Fiz uma casa. Vou-me embora hoje mesmo. João olhou finalmente para o pai, mas o carro virara subitamente à direita e ele voltou-se para a frente, sem que se fixasse em ponto algum.
- E o vício?
- Se for preciso, vimos comprar.
João não respondeu. Nada tinham para dar um ao outro e também era demasiado tarde para que alguém pudesse verdadeiramente salvar ou demolir o outro. Seguiram em silêncio até ao restaurante. Ernesto levou-o ao mesmo restaurante onde iam quando ele era miúdo e estavam sozinhos, sem Luísa, mas jantaram calados. Apeteceu-lhe abraçá-lo, puxar-lhe os cabelos, desancá-lo, deixá-lo de cama, cerceado numa camisa-de-forças, depois ficou-se, os olhos fincados em João, a memória transportando-o para o jardim de Luísa. Aquele jardim que já conhecera e já não reconhecia mais, refúgio de histórias muito antigas que continuariam por certo a desenrolar-se para sempre, bem no centro da velha cidade, mesmo que não o pudessem tomar por protagonista, não já a ele. Crescia-se de cada vez que se destruía uma história maravilhosa. No fim não sobraria nenhuma, era uma história triste.



Passaram meses. Um dia, Luísa telefonou-lhe para lhe dar a notícia. Ernesto primeiro emudeceu. Não conseguiu chorar e a seguir teve um acesso de fúria, depois recusou ir à cidade, a menos que voltasse com João.
A lua cheia ia alta no céu. O vento batia-lhe com força na cara e atropelava tudo à sua frente. O homem fez frente ao vento, as pernas abertas e os pés fincados na terra, e o vento trouxe-lhe o rugido do mar, a espumejar lá em baixo, contra a falésia. Tinha pena. Mas não era responsável por aquilo. A sua vida tinha sido a que ele tinha conseguido ter. Um pai não tinha de arcar com os erros dos filhos como se fossem um prolongamento dos seus. Luísa, ele, algo se tornara impossível muito depressa, mas isso acontecera consigo, fora o seu casamento que ruía. Luísa não era mais responsável do que ele mesmo, nenhuma mãe podia ser responsável por viver numa casa vazia, cheia de recordações mortas. Haviam feito o que estava ao seu alcance, o que achavam melhor. Ali, na borda da falésia escarpada, o homem pensou como tudo era efémero e desejou ter todos os gestos de ternura de novo. Ser pai do João de novo. Fazer tudo ao contrário. Fazer melhor. A sua vida não fora a que ambicionara vir a ter. De repente, sentia-se distante de tudo e com medo. Mas continuou à espera do filho. Quando Luísa lhe telefonou pela segunda vez, quase um mês mais tarde, meteu-se no carro e foi buscá-lo, mesmo contra a vontade.
- Continuas com o Mercedes, foi o que João disse toda a viagem, o resto do tempo passou-o calado, como se não tivesse consciência da presença do pai.
Viu a estrutura de um circo que desarmava as tendas e que antes da noite teria levantado acampamento, figuras, todas elas empurradas pelo vento, em que tudo dependia de bons e maus ventos. Momentos houvera em que João quisera ser o filho perfeito de seus pais.



O candeeiro de pé estava aceso e mergulhava os recantos da sala numa penumbra plácida. Ernesto pendurou o casaco no cabide e tirou do bolso o pequeno saco de plástico e subiu as escadas com ele na mão. A porta estava aberta e um halo de luz escapava-se, empurrado pelo candeeiro na mesa-de-cabeceira. João estava deitado, coberto até ao peito e com os braços esqueléticos dobrados sobre a roupa. Era Outubro e não estava frio, mas João tremia compulsivamente.
Ernesto chegou-se à cabeceira da cama e repuxou-lhe o edredão e as mantas e ajeitou-lhe a almofada. João suava e os fios de cabelo colavam-se-lhe à testa pálida e pronunciada, tinha os olhos fechados, exagerados nas órbitas cavadas; sob as pálpebras, as pupilas estremeciam. Afastou e acariciou-lhe suavemente a testa e o cabelo com a mão e o filho abriu os olhos. Apeteceu-lhe dizer-lhe qualquer coisa, mas não falou, limitou-se a sorrir e a apertar-lhe a mão.



O homem sentou-se na cama e colocou na mesa-de-cabeceira a ampola que retirou do pequeno saco de plástico. Abriu a gaveta e pegou no estojo de inox. Junto da ampola, estendeu a agulha e a seringa. Fez todos os gestos meticulosamente, uns a seguir aos outros numa sequência harmoniosa. João voltara a fechar os olhos e tremia, então o homem levantou a ampola, fitou-a, espetou-lhe a agulha e encheu a seringa com o líquido incolor que rebrilhava à luz do candeeiro, finalmente pressionou o êmbolo até sair uma gota e pousou a seringa.
Procurou uma veia no corpo sumido. Espetou-lhe a agulha nas costas da mão direita. Quando acabou, as tremuras começaram a abrandar e pararam um minuto depois. As pálpebras do João quedaram-se sossegadas. O homem agarrou-lhe a mão e empurrou a boca contra a sua testa, com os olhos bem abertos, e só quando a mão do filho ficou inerte na sua é que ele descolou os lábios e enterrou o rosto na almofada por uma eternidade. Sentia uma dor insuportável. Lentamente, como se tivesse sido retirado para fora da agitação do tempo, olhou o rosto de cera do filho e guardou a seringa e a ampola vazias no estojo de inox, desceu as escadas e apagou o candeeiro de pé.
Na cozinha, enfiou o estojo num saco e meteu-o no lixo, pôs o casaco e saiu. Os braços pendentes, olhando o céu imensamente cego e a espuma suja das ondas. Cá fora, o dia parecia querer erguer-se precocemente e o vento acalmara. Estava fresco. Desceu à praia e caminhou na areia sem pressa, até serem horas para telefonar a Luísa.


De repente, sentiu muito frio, como se estivesse a chocar uma doença, sentiu que podia ser o frio de João, e sentiu que era necessário que chorasse, também era necessário que chorasse. E chorou.


(A.A.)