Acordas, o sol funde o estore, ainda não são dez horas e as listas de sol queimam a pele e batem-te nos olhos desenhando uma faixa de fogo. Bebes o café e abres uma embalagem de salmão fumado que entremeias com uma cerveja. Os pássaros esvoaçam em redor, chilreando. É sábado, até segunda-feira. Acabaste de te recostar na cadeira. Nesse preciso momento toca o telefone.
- Podes vir cá?
- O que é que se passa?
- Vem cá, é melhor vires cá, podes vir?
- Claro, Vico, vou tomar um banho rápido e sigo.
Tomas um duche e vestes-te rapidamente. Estás preocupado, sabes que é de estar preocupado. Eram sarilhos, sempre que ela telefonava. Agora era o Vico, a voz transtornada a esforçar-se por ser tão comedida como a do adulto que ele sentia que começava a ser. O carro voou-te e em menos de quinze minutos estavas a bater à porta.
- A tua mãe? Ainda mal pronunciaste a última palavra, ela acode-te meia ainda na sombra mas dirigindo-se-te e para a luz. - Que aconteceu Vico? Vico, Frederico de seu nome próprio, encolhe-se para a sombra. - A mãe, tratas dela? Se houver alguma coisa telefonas?
Ela encaminha-se silenciosa para o portão cingindo o casaco. Tu fazes uma festa rápida no cabelo de Vico e segue-la. Por debaixo do casaco, imitando pele de raposa, enverga umas calças de pijama muito curtas de terylene azul-claras e meio rasgadas e umas texanas calçadas à pressa.
- Que se passa desta vez, Luísa?
- Já não aguento, Álvaro, e não é desta vez. Já não aguento.
- Por favor, Luísa, o Vico decerto não me telefonou …
- …para que eu te dissesse que já não aguento. Continuas o mesmo. Queres que te diga o quê? Porra, Álvaro, porque não me abres a porta do carro e te calas? Calaste-te e abriste o carro, ela entrou, tu, sem fechares a porta, sentaste-te a enrolar um cigarro.
- Ok. Já estamos no carro. Vais contar-me o que se passou?
- Podes deixar-me numa pensão?
- Luísa, estás completamente bêbada e são apenas onze e meia da manhã, as pensões são para se dormir, não têm matiné! Luísa tinha os olhos como insectos vermelhos, tinha chorado e os olhos cuspiam pelos vasos um vermelho que lhe ameaçava as pupilas. Tu acenderas o cigarro, fecharas a porta, rodaras a ignição e começavas a descer lentamente a rua onde estacionaras.
- Não te levo a pensão nenhuma, vens lá para casa. Agora, vais-me dizer o que aconteceu? O Vico telefonou-me…
- O Vico é um miúdo maravilhoso. Luísa desata a chorar, aquela cara bonita de olhos verdes era um destroço. - Andamos à estalada.
- Tu e o teu marido, num sábado de manhã? Não gostam de televisão?
- Desculpa. Vamos para minha casa. Lá contas-me.
- Não queres antes ir beber uma cerveja?
- Tenho cerveja em casa, aí umas vinte, chegam?
Abres a porta do frigorífico e tiras duas cervejas, ela senta-se junto ao estirador, a olhar para os papéis que ali se atafulham. Tem na cara marcados quatro dedos, uma nódoa negra do lado oposto da boca e um pouco de sangue no lábio inferior.
- Não tens antes cerveja natural, é que eu já não faço digestões normais. Há já uns anos que nada é normal comigo.
- Queres contar ou queres beber?
- Quero beber.
Luísa era uma mulher lindíssima, uns olhos verdes enormes, o cabelo quase todo ainda preto, apesar dos seus quarenta e três anos, e que bebia em demasia. Mas quem eras tu para a julgar? - Foi por gosto, a trolha? Inquiriste divertido.
- Vai-te foder, Álvaro.
- Ele era o homem perfeito, lembras-te com certeza. Ao contrário de mim ele era exemplar!
- Ele é exemplar, Álvaro. Eu não sou exemplar, não saio à mãezinha dele, não faço o que a mulherzinha dele devia fazer, percebes? O problema, desta vez, sou eu. Eu não consigo cobrir tudo o que ele simplesmente não faz.
- Ouve, tu já não és casada comigo, na altura era eu quem não era perfeito…
- Foste tu…
- Por favor, Luísa. Desta vez o que é que ‘fui eu’! És capaz de me dizer? - Porra, Álvaro, tu puseste-me a beber. - Ninguém põe ninguém a beber, Luísa. Foi por eu beber que nos separámos, recordas-te? O pugilista não bebia, era perfeito. - Quem ganhou? Aposto em ti.
- O Vico apartou-nos, eu desfazia-o, vontade não me faltava. Foi para o quarto. Foi quando o Vico resolveu telefonar-te.
- Estás com um péssimo aspecto. Não deves beber tanto.
Luísa sorri e abraça-se-te. - Olhem para o pregador! E depois a choramingar. - Ele não ficou a rir.
- Vou fazer a cama. Mais essa e vais descansar, estás precisada. Quando estiveres descansada decides, ou ficas ou levo-te aonde quiseres. Luísa acata. - Há muitos pássaros por aqui, nota.
Passa das duas da tarde, Luísa deitou-se e tu tratas de tranquilizar Vico.
- O teu padrasto?
O pugilista não era má pessoa, na realidade era advogado, trabalhava numa empresa que falira e agora no escritório de um tio onde ganhava muito mal. Na verdade, nunca o imaginaras a levantar a mão fosse contra quem fosse. Vico gostava dele e ele era um melhor pai para Vico do que tu alguma vez foras. De certo modo, mesmo se nesses momentos o desprezavas, chegavas a ter pena dele, conhecias Luísa demasiado bem. Não que o senhor perfeição fosse assim tão perfeito, não era, ninguém é. E sabias que Luísa tinha razão em tudo que lhe apontava, sem ela a casa afundaria lenta e irreversivelmente, por simples inércia. Não deixava de ter a sua piada, vê-la obstinada em salvar o casamento depois de explodir com ele.
- Não saiu do quarto. E a mãe?
- Ela logo volta, volta sempre. Em todas as famílias, Vico, há alegrias e horrores, já começas a ter idade para perceber isso. Agora deixemo-la dormir, Vico, ela vai precisar muito dos teus abraços quando voltar, não te esqueces de a abraçar muito?
Olhas para o relógio grande da cozinha. São cinco e vinte, o sol agora bate do lado ocidental ameaçando inundar a cozinha e a sala. Luísa ainda dorme. Abres um pouco as portas de vidro e baixas os estores, há uma brisa que circula, mesmo se o dia permanece quente, o chilreio dos pássaros entra fresco com a brisa. Tudo começara na véspera. Já a noite deveria ter perdoado muita coisa quando a manhã te surpreendeu. E que tinhas tu a ver com tudo isto? Sim, era uma boa pergunta, infelizmente uma para a qual não tinhas nenhuma boa resposta. Havia Vico, um filho em comum, mas a verdade é que acontecesse o que acontecesse ela chamava e tu ias, telefonava-te e tu esmorecias, insultava-te e tu desligavas-lhe o telefone para logo voltares a atendê-la, sabendo que era ela ainda, tão bêbada como antes, certamente mais.
- Tu, meu filho da puta, tu nunca gostaste de ninguém. Nunca quiseste conhecer-me, queres é que te deixem em paz, mas eu estava feliz e em paz e tu vieste e casaste comigo.
Eras uma besta, não discordavas, mesmo se não te fazia mais feliz. Não mudaras muito, entretanto. Mas porque carga de água tinha ela que te telefonar para to recordar, sempre que estava com os copos?
Uma vez, disseras-lhe que ias deixar de lhe atender os telefonemas a partir do meio da tarde, o que ela não te insultou. Que bêbado eras tu, e tu reconhecias, que sim, que era verdade, mas que não lhe telefonavas a destratá-la sempre que bebias. - Luísa, dizias-lhe, mata esse Álvaro que te fez tanto mal. Não será agora que irei surpreender-te e, a ti, a minha memória faz-te claramente mal, faça eu o que fizer.
Abriste mais uma cerveja e enrolaste um charro. Estás de novo na varanda e o odor mesclado das últimas flores do jasmim e das primeiras glicínias atordoa-te. Súbito, os pássaros desapareciam, o ar acinzentara-se coberto de nuvens pesadas e ameaçadoras e só o planar das gaivotas garantia que o mundo não ia acabar.
Foi quando te levantaste, para ir procurar outra cerveja, que a viste. Acabara de acordar, o cabelo enredado, os olhos a pesarem no rosto como bolas de ferro ainda quentes, as pálpebras coladas, na mão uma cerveja. Apoiava-se na estrutura metálica das portas de vidro e olhava-te.
- Bem disposta? Há café, tostas, queijo, salmão fumado e ovos, o que vai querer a nossa bela adormecida?
- Por que é que não deu certo?
- Café?
- Café. Eu sou maluca, não sou?
- Com tostas?
- Apenas café. O que é que tu pensas de mim?
- Tento não pensar, mas tu não deixas, sorriste. A seguir desaparecias na cozinha e voltavas com dois cafés mais um prato com queijo e tostas.
- Falei com o Vico. Que vais fazer?
- Vim estragar-te o fim-de-semana… posso tirar outra cerveja?
- Há quem goste de vidas coloridas, moi, eu estava de calções de praia e boné a bebericar uma cerveja na varanda num sábado morto. É claro que podes, e é claro que estás a beber demais e é claro que a minha tranquilidade se foi, que mais queres que diga? Porque é que vocês andaram à porrada?
- Nada. Sabes como é. Luísa manipulava uma bonequinha de plástico articulada que tinhas na estante, dez centímetros de gente, tentando sentá-la na pequenina cadeira de verga de escala aproximada que também ali estava. Lá equilibrou a boneca e torceu-se, pousando finalmente os olhos em ti.
- Não te preocupes, sabes como é, eu bebo a minha cerveja e vou-me embora e tu voltas a fantasiar-te.
- Sei como é? Não, não sei como é. Porra, Luísa, estou eu sossegado a coçar as virilhas e o Vico telefona-me aflito e estás aqui e não há nada e acabas de beber a merda da cerveja e voltas para casa, tipo vou mijar e venho já? Merda, Luísa. Isso não é amor, isso é doença.
Ela odeia-te por isso, vês-lhe nos olhos. E, no entanto, não fora ela quem, mais do que uma vez, te dera a entender já nada existir entre ela e o pugilista? Houvera pelo menos três amantes; o último, o psiquiatra. Mas até tu percebias que ali havia algo inexplicável, estavam presos um ao outro por uma promessa de sofrimento.
- Que sabes tu de mim, diz, que sabes tu da minha vida? Luísa tem o dedo indicador em riste à frente do teu nariz. - E se eu te disser que ele não se arranjaria para viver sem mim, que onde tu vês a doença eu vejo um futuro preso das minhas mãos. Que sabes tu de nós?
- Nada, Luísa, nem quero saber. Simplesmente, não te quero ver a lisonjeares-te com os teus sofrimentos como os velhos.
Não conseguias evitar sorrir quando a vias amparar o futuro como uma preciosa relíquia. Em matéria de futuro, a presunção não parecia ter limites. A ti restava-te continuar em frente até um dia parares sem que chegasses a lado algum, sem que vencesses fosse o que fosse, a não ser o próprio tempo. Mais cedo do que tarde a onda submergiria no oceano, de um modo ou de outro.
- Quero lá saber do amor, Luísa, vê se percebes, quero apenas que esqueças de uma vez que eu existo. Batam-se, matem-se, mas deixem-me em paz. Começas a parecer a Laura!
Recebes um par de estalos.
- A puta que o pariu, percebes? Diz-te ela, está sobressaltada, os olhos enormes fitam-te, cheios de um ódio imenso. Sem que possas dar-te conta dos teus movimentos, levantas a mão, mas conténs-te no último minuto. Estás a ficar velho, a tua mão baixa, lassa, e abres o frigorifico. Retiras duas cervejas, a tua vida vai continuar depois disto, é o que sabes do futuro; do amor sabes ainda menos. Passas-lhe uma e sentas-te no estirador a enrolar um charro. - Foi assim, a anterior? Desataste a cascar-lhe por água vai?
- Foda-se, Álvaro… A Laura? Comparas-me com a Laura?
Laura, tanto quanto agora interessa, era uma irmã mais nova do pai de Luísa, uma mulher hipocondríaca, mergulhada em comprimidos, mais tarde também em álcool, a viver sozinha, abandonada pelos filhos e que periodicamente telefonava aos irmãos que ainda lhe atendiam as chamadas, a pedir diferentes somas de dinheiro. É o suficiente para se perceber que foras infeliz no comentário, não para apreender toda a intensidade da dor nos olhos que Luísa te voltou.
Sempre que aparecia, Luísa, trazia consigo um sem-fim de esperanças como flores secas, como se te pedisse que as defraudasses uma a uma. A vossa relação não era mais simples do que a deles. Ela continuava a procurar-te, vá Deus saber porquê, e tu insistias em a amesquinhar. No meio de tudo isto, duas certezas tu tinhas. Sabias que a amavas. Compreendias que não podias deixar de a ferir.
- Tu sabes o que quero dizer, Luísa. Não te quero comparar à Laura, apenas talvez te queira feliz e não…
- … neste caminho que achas que vai dar à Laura!
- Não tens de me ter sempre diante de ti, não sou o teu gémeo. Como tu dizes, nunca gostei de ninguém e nunca te quis conhecer ou fui incapaz de o fazer. Sou uma besta, estás farta de o dizer, e, em matéria de relações, tal como o pugilista ou pior. Mas não tenho que dar a outra face, Luísa; estamos a ficar velhos para isto.
- Dares o quê? … Os olhos dela fuzilam. - Eu não sou o teu bode expiatório, quem julgas tu que és para poder julgar-me?
- O gajo em cima de quem tu cais? Que queres dizer com bode expiatório, Luísa, este diálogo é de loucos. Vocês batem-se, eu vou-te buscar e tu vens a minha casa dizer-me que eu faço de ti o meu bode expiatório?
- Estás a dizer que eu estou louca, é isso?
- Não, não estou a dizer, tu estás maluca e ponto final ou vais bater-me de novo?
Tens vontade de a abanar, de a abanar até que serene, mas sabes que isso não é possível, Luísa, bêbada, é como um vulcão, a raiva só se extingue quando toda a matéria calcinável foi vomitada, aí desata a chorar. Desistes.
Luísa deixa tombar a cabeça sobre o teu peito, a tua inabilidade para amparar a dor do outro torna-se convincente. Batem as dez e restam duas cervejas e o teu mundo bóia em contradições.
- Tu, ao contrário dele, nunca me amaste.
- Também nunca te bati. Queres que te leve? Não há nada mais que lhe possas dizer.
- Não.
- Se quiseres podes ficar, já conheces a casa.
- Não, vou para casa. Vou tentar esquecer-me disto tudo. Fez uma pausa para acender um cigarro. - É sempre um erro vir ter contigo.
- Então fica, peço-te, já é noite e olha para ti.
As calças de terylene azul-claras, demasiado curtas e rasgadas sobre as texanas, o casaco de imitação de pele de raposa apertado para esconder o top cor do céu do mesmo pijama, o cabelo desgrenhado apertado num nó, a cara deslavada e os olhos vermelhos, injectados, pejados de pequenos insectos de sangue, as olheiras empoladas como beringelas anãs, a cara marcada, o lábio ferido, Luísa, na rua, naquele aspecto, não enganaria ninguém e custava-te antevê-la a calcorrear as ruas naquele estado. Já não és casado, mas também já não és um solteiro. Tens preocupações de casado, sentes-te a tê-las… Ela ri-se-te.
- Há pessoas que decidem a sua infelicidade e assim se tornam felizes. Só te quero feliz. Abraçaste-a com intensidade e deste-lhe um beijo na testa.
- Sabes que desta vez vou ficar até ao fim, não sabes?
- Sei. Não te percebo, mas sei.
- Obrigado. Eu… tu sabes como é. Vou.
Quem realmente, naquele momento, iria atravessar-se-lhe ao caminho? Ela decidira e também decidira que nada lhe podia acontecer, Luísa decidia tudo e, mais uma vez, teria razão, mesmo que a não tivesse. Ela iria, do mesmo modo que ficaria, assim o decidisse.
- Dá-me uma passa. Já te disse que o tempo não passa por ti?
Fumou-te meio charro, acabou uma última cerveja e rasgou meia cidade a pé naquele estado andrajoso e determinado que conhecias dos ressacados que desciam a rampinha como se uma força imparável os movesse e, caso resolvessem parar, os atropelasse. Foi a melhor comparação que te veio à cabeça. Também ela continuava a rapariga cheia de garra porque te enamoraras.
- À sua maneira, ele ama-me. Estou certa disso.
- Não é má gente, o pugilista.
No dia seguinte tinhas duas mensagens. Uma marcava as oito horas e dizia: ‘Bom dia. Já estou nos meus passeios matinais. E tu pregador?’. A anterior era de Vico, e dizia apenas: ‘Mãe bem. Bjs’, marcava a hora a que ela chegara a casa. Pegas nos comprimidos, levas o café para a varanda, ajeitas o guarda-sol e recostas-te. De repente, soergues-te e desligas o telemóvel. Voltas a sentar-te. Levanta-se uma brisa e sentes na cara o cheiro batido do rio e do mar. Ouves Torres aLx crepitar e surge-te entre outras imagens a imagem de Vico. Voltas a ligar o móvel.