- Que posso eu dizer, meu Deus? Ernesto, no seu traje de prelado, torturava-se frente ao crucifixo batendo repetidamente a cabeça contra o cepo. Quando fora chamado a depor, tinha a fronte vermelha e negra.
- A pergunta é clara, Sr. Doutor Juiz.
- Considera-se inocente ou culpado, a pergunta é clara, condescendeu aborrecido o juiz.
- Inocente, hesitou o réu. Inocente perante Deus. Ernesto não confiava na justiça dos homens, a sua inocência tinha outra origem, mesmo se as provas, entre os homens, pareciam esmagadoras. Sobre Ernesto pendiam as acusações de Abuso Sexual de Menores Dependentes e Actos Sexuais com Adolescentes.
Ouviu todas as acusações como se não lhe dissessem respeito. Só chorou uma lágima furtiva quando, exposta na sua inocência perante um mundo adverso, a sua menina prestou o seu desumano depoimento. Nessa altura tremeu, menos da afronta, do que de amor, e Deus era testemunha do amor de Ernesto.
Que nada daquilo era verdade, uma catadupa de invenções e dislates disse o seu advogado institucional. Todas as supostas provas, garantiu, ou não constituíam prova ou eram simplesmente circunstanciais, nada de sólido havendo contra Ernesto.
Era a sua vez de depor, Ernesto subiu ao palanque, jurou sobre o seu Livro e pousou as mãos no leitoril.
- Não me vou desculpar do que é indesculpável, sou Padre e fiz votos, sou homem e pequei. Tenho cinquenta e sete anos, senhores, estou velho e doente, precocemente velho e doente, e como a noite encosta a manhã, abri-lhe eu a minha cela e o sol quis que cegasse. Agora, pecador, estou cego por amor. Sim, eu amei essa criança, como um pai, como uma mãe, como a Deus, eu amo essa criança.
- Permito-me lembrar-lhe que acabou de se declarar inocente, marcou a acusação.
- Estou inocente.
- Continue, se faz o favor, disse o juiz.
- Nunca me passou pela cabeça. Acabava de sair de uma reclusão a que me submetera voluntariamente quando deparei com ela no jardim. Foi como se um diadema de luz irrompesse e coroasse a obscuridade singela da minha vida. Deus mostrava-se-me no que tinha de mais ingénuo, de mais fundamental. Era a filha de uma jardineira auxiliar da Câmara e cheirava ao eclodir das rosas. Comecei a vê-la aos fins de tarde, no jardim fronteiro à Igreja, onde tinha por hábito sentar-me a ler quando ainda havia luz ou simplesmente a olhar para as coisas, a não havendo já. Um dia, Dores sentou-se a meu lado interrompendo-me a leitura e perguntou-me o que fazia um Padre. Disse-lhe, lembro-me perfeitamente, que fazia de Pai e Mãe dos que os não tinham, como Deus o era de todos nós, que Deus era amor ilimitado da sua criação. Quis Deus, perdoe-se-me mais uma vez a expressão, que a mãe da menina bebesse bastante e ela se me fosse aconselhar mais do que uma vez. Recebia-a na Sacristia, onde podíamos estar a sós e falar prolongadamente, nenhum de nós tinha pressa. Confesso, gosto de crianças, amo-as como uma mãe ama as suas crias, como o irmão mais novo idolatra o brilho das irmãs. A Dores era uma quase mulher nos seus catorze anos, mas era o quase que me encantava, sobretudo o modo como me punha questões, a unha do anelar invariavelmente espetada entre os incisivos.
- Lembro-me do dia em que recebi a visita da senhora sua mãe. Como começou por se lamentar da sua condição económica e como rapidamente avançou para a minha suposta obrigação de pastor. Reconhecia eu ou não dotes especiais na sua filha e, se os reconhecia, quem se não eu poderia fazer com que vingassem? Ela a pensar numa pensão que lhe sustentasse o vício, eu a escrever para várias escolas sacerdotais, a pedir informações e inquirir a possibilidade da sua colocação, dados os escassos meios económicos e má influência familiar e a propor-lhe guarida. A miúda ficaria a viver sob a minha alçada, passaria a ser o seu tutor e encarregado de educação e, em troca, ela tratar-me-ia da casa e como tal receberia um pequeno salário que dividiria com a mãe como muito bem entre elas ficasse ajustado. Foi quanto bastou àquela megera para me vender a sua filha, meio prato de lentilhas. Não amasse eu tanto a pobre filha da bêbada, logo dali a teria escorraçado, como Jesus aos bufarinheiros no Templo.
- Permito-me recordar o réu de que não é da infância mais ou menos infeliz da vítima que aqui se pretende ajuizar.
- Meritíssimo! Sou inocente perante Deus, mesmo se aparentemente não perante os meus semelhantes. Antes do mais, é um juízo de carácter que me está a ser feito. Apenas por isso, Sr. Dr. Juiz, o ter de me alongar mais do que eu próprio desejaria. Pequei, admiti-o, fiz votos que quebrei; do que aqui sou acusado estou em absoluto inocente. Perante Deus omnipotente, Ele sabe-o, vez alguma, ousei depor-me ao serviço do amor idolatra que é o amor dos homens em desfavor da vontade de Deus. Todas as criaturas são criaturas de Deus e a Ele pertencem. Todas elas, simples criaturas entre as quais não difere humanamente, mas, a verdade seja dita, eu diferi. Sim, sou demasiado humano para o meu Deus, mas não pequei a este respeito e não estou menos inocente perante os meus semelhantes. O meu único pecado, senhores, foi um amor tão próximo ao de Deus que sucumbi, encadeado, a esse simulacro arrebatador - que ainda sucumbo. Eu amo-a, Sr. Dr. Juiz, a Dores é a minha menina. É-me indiferente o que a Lei dos homens de mim poderá fazer, mas não seria fiel ao meu Deus se não me defendesse do que a Ele acusa. Porque Deus é amor e eu amei. Amei a pedra no sapato e o bicho esquivo, a vida e a morte e a Dores e, acima e por dentro, o vulcão que é o amor de Deus insinuou-se entre nós como uma graça.
- Dores era ainda uma miúda quando a recolhi. Como disse, acolhi-a como empregada, mas era demasiado miúda, tive que lhe ensinar tudo, ao que ela invariavelmente juntava os joelhos e sorria, abrindo uma covinha do lado direito da boca. Tinha os olhos muito pretos e eu disse-lhe que eram amoras doces e que os frutos doces atraíam os animais. Eduquei-a no carácter e na mente educaram-na as melhores escolas, orgulhava-me dela, bonita e brilhante. Até que entrou na Faculdade.
- Sentia-me só e nem Deus era capaz de me acudir. Dormia mal, tinha começado a fumar e passava noites inteiras em branco à volta de um maço e de uma chávena de chá.
Um dia veio dizer-me que namorava e pedir-me que a bendissesse. Assim fiz. Não chegou a acabar a faculdade e eu não dormi dias a fio, tinha pesadelos como um pai. Visitei-a quase que semanalmente desde que casou, tem três filhos lindos que me chamavam avô Padre e que faziam com que as lágrimas me aflorassem os olhos. O mais velho é lourinho, os olhos muito azuis e rabino e inteligente como a mãe. Quis o pai julgá-lo antes de Deus e declarar alto e bom som que não era pasto de bastardos e que era eu o progenitor do Americano, como lhe chamava. Perdi a Dores, nunca mais me foi permitido ver os miúdos. Soube depois que o Francisco fora viver com um tio que partira para a América. Se senti saudades da Dores? Oh, meu Deus, como as senti. Eu amava-a como uma mãe ama os seus filhos, seguia-a como um pai e, benza-me Deus no seu eterno amor, queria-a como mulher, nunca deixara de a querer, mesmo quando a abençoava. Entretanto eu mudara de paróquia, mas por uma bizarra ironia o ciúme do marido reaproximava-nos e vi-me a contar-lhe de novo histórias para adormecer.
- É verdade que a beijei e que dormiu na minha cama em total comunhão, mas acaso a desflorei ou, pior, a violentei? Não. Nunca sobre ela exerci qualquer poder físico ou outro e nem uma só vez a maltratei, mesmo se apenas em pensamentos e omissões. Beijei-a como o pai e como a mãe que dela fui e, nos melhores momentos, brincamos como irmãos. Quando não era o seu igual nessas brincadeiras, era o seu tutor e o seu colo. E foi ainda a uma imaculada imagem que cheguei a recostar-me. A quem cheguei humildemente a beijar os pequenos seios, perfeitamente enamorado, como se fosse importante que houvesse uma última vez em que seriam beijados sem gula. Amamo-nos e fomos felizes, apraz-me pensar. Dei-lhe tudo e nada exigi. Que posso dizer sendo fiel ao meu coração e à minha crença? Antes de tudo o mais, que a amei, meu Deus como a amei!, depois que a amei à medida do meu amor por Maria, Mãe de Deus, que fui pai, mãe e irmão da Dores, que o seu bem-estar e felicidade eram os meus maiores e mais contínuos pesadelos e que chorei quando abalou, mesmo se era eu quem a ajudava a partir desejando a sua vontade como a minha fora.
Até que Dores desapareceu. Constou que se diluíra na cidade, junto ao delta do grande rio, perdida numa vida em que os papéis são tanto mais ingratos quanto mais intensos foram os nossos sonhos. Não sei, nunca mais a vi e os anos passaram amargos. Posso imaginar que não tenha sido muito diferente para ela. Mas, ao vê-la sentada junto à acusação, não posso dizer que a compreenda.
- O réu… preparava-se para dizer a acusação.
- O réu... levantou-se a defesa.
- O réu... levantou-se a defesa.
- Atenha-se aos factos, se faz o favor, retorquiu o juiz.
- Sr. Dr. Juiz, eu amo-a, hoje como então, valha-me Deus. Não se julga o amor que Deus nos dá. Perante o amor não há factos.
No seu lugar junto à acusação, os olhos de Dores incharam de lágrimas que se apressou a chupar com o lenço. A seguir, retocou a maquilhagem, endireitou-se como se nada fora e os seus olhos brilharam contra os dele.
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