domingo

Revolução e Exame


Bim virara a folha. Os vigilantes estavam atentos. Bim perguntou-se a que espécie de treino os sujeitariam. Virara a folha e os olhos dos vigilantes viravam-na com ele. Nada mais, nada menos. Nem um pestanejar a alijar qualquer carga, o levar a mão à cana do nariz, debaixo dos óculos, para coçar. Teriam família? pergunta-se Bim e olha de soslaio. Mas já retoma as folhas que virara. Sabe que a qualquer momento podem ler o que escreve, que a condenação definitiva pode a qualquer momento apeá-lo.
Ao toque, tinham soletrado o seu nome completo, o número que o definia administrativamente como individuo, registado qualquer coisa numa folha e indicado o seu lugar. A sua cadeira era a da ponta, junto à janela e à secretária. Esperou. Os examinadores demoraram as instruções. A sala era pequena mas com um amplo pé-direito, as carteiras apertavam-se. Enquanto os examinadores liam as instruções, a sua carteira permaneceu impávida e definitivamente ancorada ao soalho.
Bim voltava às folhas, escrevendo como dele se esperava e a cadeira adaptava-se à sua organicidade tão naturalmente como o faria a casca de um caracol. Os olhos sossegavam na quarta pergunta quando uma pequena multidão irrompeu sala adentro.
Viu-os, mudos por um instante, os olhos percorrendo a sala e logo eclodirem num berro junto, gregoriano. O regime caíra! diziam. Que o regime caíra!, berravam e saltam e cantavam e corriam e voltavam em festa agitada de crianças.
Os vigilantes demoraram-se alguns instantes parados, os olhos postos no examinando; dir-se-ia que nada tinham ouvido. Mas agora era esmagadora a sombra da sala e perna a passo os vigilantes acederam espreitar os corredores, primeiro um, depois o outro, e, como se uma coisa obrigasse a outra, deram-se à liberdade da fuga, não sem que antes pousassem nele os olhos uma última vez como se em despedida formal. Assim que saíram era como se a pele lhes pesasse menos, ninguém diria ‘eis dois vigilantes’, mas, nada mais certo, eis dois fervorosos apoiantes da revolução!


- O regime caiu! Ó homem, o que faz ainda aí? Os examinadores fugiram todos, homem, o regime caiu! - repetiu um dos intrusos, menos impertinente do que boquiaberto. O examinando olhou-o, estranhou a falta de presciência, mas não disse nada. Os vigilantes foram longamente treinados para aparecer e desaparecer e aprenderam com o diabo a piscar o olho, pensou o examinando retomando a escrita. Quando voltarem terei o trabalho adiantado, pensou, há uma certa margem de liberdade em ter o trabalho adiantado.

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