Foi uma casualidade, continuas a pensar; queres com isto garantir que não houve qualquer premeditação. Apareceu-te, um dia, recomendada por uma amiga próxima e, por um desses automatismos das redes, adicionaste-a aos teus amigos. Sempre gostaras de conhecer gente e mais de metade desses amigos eram, como ela, conhecidos de conhecidos ou conhecidos de conhecidos de conhecidos, na prática, desconhecidos mais ou menos recomendados, já ninguém sabia por quem. Depois, a qualquer momento podias excluí-la, mesmo que então isso nem te passasse pela cabeça. Era mais uma face num livro de faces a que pouco te aplicavas. Era bonita, nisso repararas.
Não sabes quem começou, mesmo se continuas a achar que não foste tu. Talvez um comentário jocoso e depois uma troca de Smiles. A certa altura, noite em que não conversasses com ela não tinha cheiro a noite. Sobre o que se conversava? Sobre as mais variadíssimas coisas que podiam conversar dois completos desconhecidos, na presença apenas de duas fotografias: namoriscavam. Como dois animais apalpavam mutuamente terreno. Primeiro, soubeste que ela era casada, depois que era relações públicas numa renomada instituição cultural da cidade, finalmente, sem que soubesses porquê, percebeste que iria acontecer.
Uma noite, aconteceu. Xânia, como se estivesse escrito em qualquer parte, convidara-te para jantar. Combinaram o dia e a hora e ela confidenciara-te a morada. O marido, ao que supuseste, estaria em viagem de negócios, mas interessava-te pouco.
Três dias depois, pelas oito da noite, chamavas um táxi, davas a morada e deixavas-te surpreender.
À volta tudo era estranho, a ponto de não saberes de que lado estava o mar. Não conhecias aquela zona da cidade. As cidades haviam crescido desmesuradamente e um homem normal de pouco mais de trinta anos dominava no máximo quatro zonas da sua cidade. Aquela onde vivera a meninice, aquela onde agora vivia, eventualmente aquela onde trabalhava e, durante ainda algum tempo, a cidade divertissement, tal como estivera em voga cinco anos atrás, aos seus vinte e poucos anos. Depois dos quarenta, essas zonas tendiam a reduzir-se cada vez mais a duas e, com o tempo, a um lugar indistinto e pouco mais do que vazio. Fosse como fosse, ninguém conhecia toda a cidade. As grandes cidades tinham-se tornado incomportáveis e percorrê-las ameaçava tornar-se um projecto de vida.
Atravessaste a rua e tocaste. Num repente a porta da rua abriu-se com um silvo metálico e tu subias os quatro lanços de escada.
- Álvaro?
A porta do apartamento correu, esventrando a pequena sala de cima e o desnível que anunciava uma segunda horizontalidade, três ou quatro degraus abaixo. Xânia, atrás da porta, sorria. Ouviste Schubert e viste a mesa posta, as chamas dos castiçais a tremeluzir nos pratos e nos garfos.
- Encomendei a comida. Bebes alguma coisa?
- Bebo. Qualquer coisa, mas bebo.
Na última noite em que tinham conversado, ela fizera-se bebida, dissera que tomara dois Xanax e dissera que te faria isto e aquilo e mais aquilo. ‘Eu escolhi-te, fui eu que te escolhi’, disse por fim e tu expediste um duplo Smile. Cada decisão, és tu que a tomas, pensaste.
E ali estavas, os dois frente a frente, ela ainda mais bonita do que na fotografia, tu pouco mais novo e mais receoso e ela estendia-te um Gin com água tónica e tu olhava-la, na tua cabeça ouvindo-a ainda dizer aquelas coisas todas da outra noite. Lembras-te de beber mais Gin e que não jantaram até muito depois da meia-noite, mas não podes precisar como aconteceu.
A certa altura, Xânia sentou-te e começou a dançar e a dança era para ti, exactamente como dissera que faria. Pouco depois levantava a camisola, fazia-a passar sobre os ombros e deixava-a cair, dava uma volta e, ainda de costas para ti, desabotoava o primeiro botão das calças e só então se te virava, uma anca mais subida do que a outra, a mão direita repousando nas calcinhas de algodão, a outra caindo, encostada ao corpo. Estava agora a menos de um metro de ti, e os músculos retesavam espetando a pélvis. Na linha de algodão, à altura dos teus olhos, um pequeno maço acastanhado de notas de cinquenta tombava suavemente para diante.
- Toma. Quanto queres?
- Quanto queres, Álvaro? Quanto queres para me foder bem, querido? Cem, cento e cinquenta a hora? Pede, meu amor, pede.
Xânia fez tudo o que disse e pagou-te. Peça a peça. Pelo meio cearam-se carnes frias, tostas e bebeu-se um vinho branco, depois continuou-se no Gin, havia notas caídas pelo sofá e pela sala.
Quatro horas mais tarde, Xânia deixava-te usar o chuveiro, chamavas um táxi e ela levava-te à porta de baixo. Antes, apanhara uma a uma as notas - um total os seiscentos euros que foras obrigado a aceitar.
Dois dias depois, Xânia apagava-te da sua lista de amigos e nunca mais te cruzarias com ela.
Não te seria difícil voltar a encontrá-la, pensaste, sabias onde trabalhava, sabias onde morava, por maior que fosse a cidade, sabias onde a procurar. Mas honravas o desejo de Xânia, ela sabia, ambos sabiam, que não a procurarias contra a sua vontade. Até àquela tarde, duas semanas depois, em que, sem que soubesses muito bem porquê, resolveste telefonar para o museu.
- Não, ninguém com esse nome trabalha na instituição. Garantiram-te. Nesse momento, percebeste que não tinhas escolha, de nada te valeria enfiares-te num táxi e atravessar meia cidade, nenhuma Xânia te esperaria naquela morada. Xânia desejava desconhecidos, jovens desconhecidos a quem pudesse pagar e era tudo. E tu, tu já não eras um desconhecido.
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