- Sempre à mesma hora, entendes, não há coincidência.
Alberto ouvia-o. Apreciava aquela hora e meia em que, de quando em vez, lhe era óbvio cerrar a boca e desimpedir os ouvidos. O Leiria continuava: - Eh pá, enche os olhos a mulher. Mas não julgues que seja fácil, lá porque há cães no meio.
- Estás a ver o cão dela, é um daqueles tacos felpudos e implicantes. A cadela sabe mostrar distância, eduquei-a, é mais humana. - Claro que ela reconhece um cão, mas prefere humanos, está ensinada. Mas o diabo do cãozinho dispara a ganir, perfeitamente possesso, aos pinotes.
- O bicho pressente o meu cheiro. Os homens têm o instinto atrofiado, pá, os cães não. Até que a cadela abre a boca - vê a boca da Setter, pá! - ia fazer ió-ió do cãozinho. Foi ver o taco enrolar às pernas da dona, um pompom entre os sapatos, as meias brilhantes a perderem-se acima do joelho.
- Um dia percebi que ela tinha carro. Vi-a a fechar a porta, depois de estacionar. Tinha no vidro de trás um espantalho em pano, sim deste tamanho, e esticou as mãos, ali a baloiçar. Que género de pessoa tem um carro com um espantalho de pano a baloiçar no retrovisor? Era mau sinal.
- A certa altura, pensei que eram duas. Um dia, à mesma hora, lá vi o cãozinho irritante, mas ela parecia-me mais velha. Tinha uma irmã mais velha, devia ser isso. Outro mau sinal. Mas enchia o olho, a mulher.
Claro que Alberto entendia, há quantos anos conhecia ele o Leiria? Desde o ofício às histórias com que mobilava um mundo perfeitamente praticável, mas de todo descoincidente com o do homem que passa na rua, tudo ele conhecia do Leiria.
- Sabes o que vou fazer, continuava o Leiria. Ando concentrado nisso. Tenho pensado muito. - Ela já reparou em mim, pá, e já percebeu que eu reparei nela. Mas o pompom quer-me à distância. Um dia surpreendo-a. Viro-me a ela no momento em que a besta atacar e digo-lhe: 'o seu cão é sagitário, não é?' - Entendes, 'o seu cão é sagitário, não é?' - Ora, se eu estiver certo e ela for... se ela não for sagitário não dá em nada. Mas, vê, e se ela for? Vai dizer qualquer coisa como isto: - O cãozinho não sei, mas eu sou sagitário, e naturalmente vai perceber que aqui há bruxo. Depois, vê-me a Setter, ela vai pensar que eu sou um mago rico, um bom carro, palacete, coisas dessas.
Alberto simpatizava com o Leiria. Com o seu modo, a sua condição de lado de fora incomparável, a viver uma salinha e quarto em penumbra contínua, acima de uma vintena de degraus rangentes e estreitos, em cotovelo. Chegara a dar aulas numa faculdade, o Leiria. Escrevera para um jornal de grande tiragem nos idos de setenta, dera aulas de guitarra clássica. Um dia tudo mudava. Deixou o trabalho e nunca mais trabalhou. Passara a ter o ofício, opção que fizera dele a personagem que se lhe reconhece no meio.
Tinha todo tempo livre e uma rigorosa rotina de solitário. Horas para atender, horas para manutenção, horas em que compunha, outras em que estudava e, ao fim de semana, se houvesse carro e dinheiro para dividir a gasolina e fosse meteorologicamente possível, galgava serras e penedos munido de duplo cajado, para fotografar pedras.
Álbuns e mais álbuns empilhavam-se por todo o lado, aos cantos, junto aos sofás e a encher a salinha, fotografias a pejarem as paredes, a mesa – pedregulhos, fragas, penedos, penhascos - milhares de rochas a penar para a objectiva, cada uma a exibir a sua formalidade, cada uma a sinalizar um percurso. Mas nada disso era o ofício. E quando as coisas corriam pior com o ofício, o Leiria vivia com uma mão à frente e a outra atrás. Tinha de cortar nos passeios de fim-de-semana e no café, no filme, na luz e na água. E o ofício ia de mal a pior. Já não era o único na cidade, estaria desactualizado, talvez, as redes também envelhecem. Fora o primeiro, mas o que é que isso interessava? Tinha uma clientela selecta e valia-lhe o jantar em casa da mãe, ele e a Setter.
- E o Xavier, houve mais alguma coisa, depois da cola na fechadura?
Uma noite, três anos atrás, Alberto conhecera Xavier B.. Tocara à porta e, como sempre afastara-se os vinte centímetros da praxe que o tornavam reconhecível pela frincha entreaberta do estore do primeiro andar, ouvira os passos na escada e depois os trincos e a porta abrir-se. Nesse minuto, surgido do nada, emergiu a figura alta e magra de Xavier que também entrava. Alberto, instruído pelo Leiria, subia de imediato para a salinha enquanto esse Xavier B. permanecera cerca de dez minutos à conversa no vestíbulo. Durante todo esse tempo, Alberto tentara perceber de onde e como surgira Xavier e, inadvertido, o encapuçado dos anúncios da Sandman de quando era miúdo, emergia. Quando o Leiria subira trazia quatro tijolos de quilo que tratara de arrumar antes de ir ter com Alberto e fora assim, pelo canto do olho, que ele ficara a saber quem era o fornecedor.
- Não te contei? Depois de por três vezes me ter posto cola na fechadura, deixou-me um cartaz à porta, uma folha A3, letras garrafais a marcador preto, tudo muito improvisado e cheio de fita-cola e sabes o que dizia? ‘Sabem quem mora aqui?’. Sim, exactamente isto, ‘Sabem quem mora aqui?’. Durante uma semana e pico, tive que acordar cedo. Ele punha-os de noite eu retirava-os de madrugada. Tirei quatro. Depois desistiu. Há uma ética tácita… há limites, e ele sabe.
- …e se quisesse deixar-me prostrado a um canto ou matar-me já o teria feito. Ele não é estúpido, é só aldrabão.
Um dia, insatisfeito, decidira simplesmente mudar de fornecedor e tivera para um mês, inclusive ameaças de denúncia. Alberto, acaso pensasse nisso, ainda se espantava. A verdade é que o Leiria aproximava-se dos trinta e cinco anos de actividade sem nunca ter tido grandes problemas. E os que tivera, como o assalto que determinou os alarmes que agora enchiam a casa, haviam sido rapidamente resolvidos com a expulsão de algum cliente dado a outros produtos do mercado e incremento da segurança. Uma coisa toda a gente sabia, o Leiria só negociava em tijolos, ocasionalmente psicadélicos com os mais íntimos. Em sua casa, na salita de uma só pequena janela, não se bebia e não se fumava, muito antes da vaga proibicionista.
- O Xavier aparecia sempre a cheirar a álcool, lamentava-se.
Tivera hepatite C e tinha o fígado de um morto a funcionar dentro de si. Mas acaso a atribulação diminuía o encanto descentrado do quotidiano do Leiria? Nem um degrau. O mundo do Leiria era exacto como um relógio e, contudo, à prova de realidade. Um mundo onde calhaus e penedos podiam aparecer e desaparecer por obra de espíritos e onde todos os encontros eram inconfidências mágicas e sinais. Passou pela hepatite e pela incorporação, como lhe chamava, como por uma proeza sensorial. Entretanto, engordara e o transplante tornara-o mais luzidio, as mãos papudinhas a terminar em dedos finos como patas de aranha e povoara os espaços entre as fotografias de pedras com recortes de super-heróis do Mundo de Aventuras, de que tinha os primeiros números.
A hora de Alberto terminara, era hora de ir passear a Setter. Descidos os degraus, o Leiria espreita pela fenda da caixeta do correio, move os trincos e entreabre a porta, olha à direita e à esquerda e volta-se para dentro.
- Podes ir.
Claro que Alberto entendia o Leiria. Infelizmente para o Leiria, aquela sua história era pouco povoada. Que mulher, em seu mais imperfeito juízo, abraçaria tão desconforme modo de viver?
- Da próxima contas o desfecho, disse-lhe Alberto.
Fosse como fosse, o Leiria caía sempre de pé. Ocorreria outro sinal, outra coincidência, outro teste, um afirmar recuando, e Alberto, na margem da margem, ouvi-lo-ia novamente pontificar na serenidade da sua divina, feliz anomalia.
Ainda ouviu os trincos fecharem-se. Depois entrou no carro.
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