sexta-feira

Como anjos e demónios


Todos os Domingos de manhã o Sr. A. faz a marginal do rio com um saco preto à procura de histórias. Por vezes cai-lhe uma na cabeça, mas a maior parte das vezes não é assim tão fácil. De uma vez, estendera ele o braço para deter um papel que ameaçava no vento, e logo três lhe tombaram aos pés, atemorizadas. Eram histórias ainda pequenas, historinhas a quem sua palma, de tão sulcada e aberta, amedrontara mais do que aquela folha de jornal à deriva. Quando assim é, o Sr. A. deixa-as partir, não as quer nem tão pequenas, nem medrosas, mas custa-lhe sempre abrir mão da perfeição de filigrana das pequeninas.

Nos melhores Domingos, o Sr. A. apanha duas ou três histórias, mas esses são Domingos gordos, não raramente o Sr. A. regressa a casa tão aligeirado como saiu, o que lhe é desagradável. Também lhe acontece tropeçar numa história que já leva um escritor pela mão, e lá tem que se desculpar, o que também o aborrece, quase tanto quanto o ar portátil dos sorridentes escritores. No último domingo, acabara ele de caçar uma história corpulenta, quando abriu gulosamente o saco apenas para descobrir que já estava assinada. Como começasse a chover, o Sr. A pôs o saco preto na cabeça, certificou-se de que abotoara o sobretudo e foi para casa sem qualquer história e muito sisudo.

As boas histórias estavam cada vez mais difíceis de aprisionar e alcançá-las requeria cada vez mais astúcia. Talvez por isso, o Sr. A. andasse desalentado.

Naquele domingo, o Sr. A. ficara por casa, mais precisamente pelo jardim. O caçador recolector daria lugar ao agricultor, pensou, e, pazinha na mão, começou a revolver a terra preta enriquecida com composto, perfurando-a depois várias vezes em profundidade e deixando cair as sementes. Porque não tivesse senão seleccionado a melhor semente, não tinha centenas no saco, mas pouco mais de duas dezenas. Guardou meia dúzia para outra altura e fez a água circular lentamente entre as que depositara na terra. Em Novembro teria os primeiros frutos, quando as delicadas flores brancas do piripiri estoirassem em malaguetas verdes, pretas e finalmente vermelho ardente, depois, a partir de Março, uma cornucópia de histórias, do doce ao limão.

Agora, os Domingos de manhã encontram frequentemente o Sr. A. curvado sobre a terra do jardim, tratando de medrar o dia em que ela rebentará em histórias. É claro que, porque nos demais dias trabalhe numa repartição e nem tudo nasça da terra, o Sr. A. passara a fazer a marginal aos Sábados e estava feliz; o sábado não só palpitava inexplorado, como refulgia em histórias. Na verdade, o Sr. A. estava duplamente feliz, nunca, até àquela data, tivera Sábados e Domingos como se tem anjos e demónios.

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