terça-feira

A velha


A camioneta apoderava-se da rua e revolvia-se em acessos de vigor e acabrunhamentos quase simultâneos como o resfolegar de um animal. Por um breve instante, Alberto era um ponto de repouso entre a azáfama geral, uma infracção às leis do movimento. Acabou de beber a cerveja e subiu. O resfolegar do animal subia de tom, dominando a rua.
Olha ainda uma vez pela janela. Como estaria a velha, como seria voltar a vê-la? Do lado de lá as gentes confluem e divergem ao encanto das correntes, ora distantes, ora tão próximas que, em estendendo o braço repentinamente, arriscaria a violência do embate. Abre a revista que comprara no quiosque para logo a voltar a fechar. Os seus olhos fitam com estupor o tejadilho. Tenta ver-se a si próprio de longe. De um outro, que o olhasse como ele olharia. Mas não sabe com que se debate quando é ele outro, mais sereno talvez, mais aquietado; e como se distinguiria ele ainda, olhando-se como se fumo e flutuasse assim como se fumo ou fosse tudo fumo? Não obstante, ali estava ele, quase repousado, o corpo no sintético do assento e a olhar-se de cima, a revista cravada entre os dedos.
A camioneta arranca num violento puxão e a concertação de sons e cheiros empurra com facilidade aquele colosso que galga os paralelos, enquanto a porta hidráulica contém o mais que pode o irremediável. Quer lembrar-se do primeiro impulso: não ir, não comprar o bilhete. E no entanto está costurado àquele bilhete; a necessidade explodia num galope.

Chegaria lá para as dez da noite. Desde a morte do velho que evitava visitá-la.  Desde que ressequida e arrastada saíra de casa, naquela terça-feira, perdera feições. Havia uma lembrança vaga, resumida, enganosa. Uns olhos azuis de todos os azuis. Como estaria? Tinha covas quando ria e umas mãos trémulas como cordas a verter do casaco. Um dia, escondera as jóias na sanita. Não eram muitas. Por milagre escapariam aos convulsivos ressaltos da água agitada. Por milagre. Não fora um canalha por não a ter visitado mais vezes? Sim, era um canalha, mas não a visitaria – limitaria as visitas à irmã. Quando se chega à situação da velha não se tem visitas. Mesmo que todos os dias a visitemos.
A camioneta era um miradouro para outra cidade onde a velha era digna de pena. Passara a vida a azucrinar-lhe a cabeça – não o amava, fora-lhe cravado na garganta; sua mãe assim quisera. Mas para o velho as coisas eram diferentes.

Alberto saía ao pai, tal como a irmã. O papá perdera toda a fortuna no casino. Mas não em qualquer casino. No casino que o papá empreendera ele próprio. Que se tornaria o gozo restrito de intelectuais de província, putas selectas e dançarinas espanholas ou ao contrário. Bebera e jogara até ao limite das forças e das posses. Gozara a última prata. E a mãe lá coseu os veludos vermelhos dos cortinados, com que vestiria as duas durante os anos que seguiram a desgraça. Algo bizarras essas efígies a que o veludo dos repetidos vermelhos vestidos não retirava o encanto que herdavam da mãe.
Antes moravam numa casa senhorial, sob a sombra dos castanheiros e das genealogias. Depois, já era pequena a casa e outra a cidade. Uma cidade maior. A casa ficaria ainda mais pequena, mas a cidade crescia. E ela apaixonava-se. O amado dançava maravilhosamente e tinha um humor elegante. E o velho a explicar-lhe o francês, a pedido da mamã, a escrever cartas apaixonadas ao amado, a escrevê-las como se lhe fossem dirigidas, a compor poemas que o outro jamais entenderia, a marcar-lhes os encontros que chorava, e ela achava-o ridículo. Mas era preciso que ela fosse feliz, sobretudo que não tivesse pena dele – sobretudo que não desse por ele. E o velho era por essa altura jovem - e o jovem começava a ser velho.

Que tanta dedicação tem merecimento, pensou a mamã, e vai e torce-lhes o destino, casando-os e selando o casamento com a sua presença para sempre. Casaram os três. Ele radiante e humilhado, ela prometendo-lhe a vida negra, de seus olhos azuis - a mãe chorosa e satisfeita, parecendo menos magra e não deixando ainda adivinhar o esclerosamento e a hemorragia final. Apesar da sua condição modesta, o velho era empregado de um grande banco, estava acima de remediado – o que garantia a subsistência dos três. Um filho recomporia o quadro, pensaram. Ou pensou a mamã. O filho, Alberto, nasceria num franzir de sobrancelhas, um aperto dos lábios e um gemido morto, tão lustrado das sanhas do materno como macilento, um quase-morto de abalar qualquer simbologia do primogénito. Tentaram uma segunda vez. Tiveram uma menina que saia da cara do pai e tinha os olhos da mãe. Ele seria de uma dedicação invulgar aos filhos. Ela carregava-os nos giros da ociosidade, era encantadora, plena de humor, fútil e infeliz. Agora ele morria, e ela a fazer o escarcéu. Havia aquele mal-estar inesperado que a privava de ar e do Majestic. E ele morria como vivera. Nunca levantando a voz, nunca ripostando, quem sabe compreendendo a sua culpa na dor que ela, brusca, cuspia e repisava num zunir contínuo, pesado, arrastado, a que ele anuía levantando e baixando os ombros e fechando os olhos, como se murmurasse entre dentes, esmagado por aquela pantomina azeda, perdoa-me, perdoa-me. E aquele amor que o dia-a-dia atordoante dos deveres calcina parecia sobreviver nos olhos do morto. Morreu sem, num arrojo de génio, cuspir o imenso quisto que lhe atravessava a garganta, lhe atravancava a voz, lhe provocaria o eczema nervoso, lhe derretera o peito de atleta. Morria sem que ela o perdoasse.

Embora muito passasse das oito ainda era dia. Da popa à ré as vozes retumbavam sem interrupção reunindo-se ao resmonear abafado da camioneta. De quando em quando, breves alterações de ritmo e nível. Aparentemente mudo, o cenário desdobra-se e rasga na direcção contrária. Casa, café, carro, carro. Carro, árvore, árvore. Carro, carro, carro, montanha, montanha atrás de montanha, montanha com casas, montanha com café. Vento. Desde a morte do velho que evitava visitá-la. Chegaria lá por volta das dez. Agora a velha enfastiava-se em casa da filha, contorcia-se do ócio a que a velhice obriga e para o qual ela não fora feita. O azedume colorira-se de mágoa. Insinuava-se, estudava as cenas de desespero em que a sua mente dava os últimos sinais de uma inteligência teatral, rica em indumentárias. E lacrimejava, e aquela jovialidade cruel que Alberto envergonhara, fazia agora pena na pele enxuta, pálida, nos olhos cinzentos, nas pálpebras engelhadas, nas pernas que titubeavam - no exílio que se lhe tornara a vida. Um bilhete para o inferno. E, todavia, naquela face de velha, ainda algo permanecia da beleza da juventude – algo que ela retinha furiosamente sob densas camadas de pó-de-arroz e rouge, como proezas de amor que a falta de amor envelhecesse. Como se, um dia, o não fazendo, a sua alma, ligada à terra só pela cor dos olhos, se desarticulasse do corpo e se enterrasse, sem um suspiro, no lacre do inferno. O velho morrendo vingara-se. Uma vingança seca, que ele certamente não desejava, mas de que a providência se encarregara friamente.
A velha agora morria, e ele ia vê-la morrer.

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