sexta-feira

Jogo de azar


Luísa convidara-me. Vamos passar o fim-de-semana junto à nascente do rio, queres vir, a Maria também vai, que te parece? Podias desafiar o Artém, ele gostaria, aposto que gostaria. Não a quis desapontar. Luísa é a ex mulher do meu melhor amigo, há pouco mais de um mês tinham-se separado e, claramente, ela tratava de atirar os dados. Mas porquê eu? Não seria a minha figura, sou baixo, os ombros pequenos, a barriga a ficar proeminente, a cara num emaranhado precoce de vincos, uma pele pálida e desanimadora, os olhos uns papos tingidos por uma vergonha muito antiga. Foi então que caí em mim. Luísa enlaçava um jogo de azar que incluía uma singular ideia de luto e, naturalmente, pensara em mim para jogar as cartas com Maria. O atrevimento de zelar pela ex mulher do meu melhor amigo nem me passara pela cabeça. Simplesmente, não me dizia respeito, mas acabei por ir, não me perguntem porquê. Às três horas da tarde estava à porta da Luísa, o Artém a meu lado a fumar um cigarro.
Chegamos tarde, já perto das sete, mas o calor persistia no limiar do infernal. Mesmo antes de se montarem as tendas, mergulhámos numa pequena represa natural poucos metros a jusante da nascente. Artém exibia a sua beleza eslava e chapinava a margem como um golfinho desenvolto e gracioso. Luísa, com a cabeça apoiada nas rochas e enfiada na água fria até aos ombros, olhava-o com admiração de fêmea enquanto Maria arrumava os sacos num socalco louro não muito longe, de onde nos podia ver, e sentava-se a fumar um Gitane. De vez em quando dizia-nos adeus.
Até que ponto Maria se aperceberia da sua situação frente a mim? Quantos de nós seríamos capazes de compreender que há coisas que nos obrigam a fazer certas escolhas em vez de outras e que toda a escolha tem consequências terríveis? Nessa noite, fomos a um bar junto a uma praia fluvial, alguns quilómetros a ocidente, um pré-fabricado em madeira avermelhada atravessado por uma parede de pedra virada para a água, com um espaçoso alpendre fronteiro, atacado pelo tempo e pela humidade. Não sei quem começou a beber demais, se eu se Artém. A certa altura, as miúdas continuavam sob o alpendre, engalfinhávamo-nos os dois, na praia, entre as raízes. Um jogo de homens excitados pela bebida. Estivemos que horas naquilo, isolados do mundo e sem que notássemos o tempo passar, Artém convocara-me para os meus quinze anos e eu estava feliz a rebolar na areia. Não assim Luísa, que nos olhava num misto de comiseração e nojo. Maria, essa, estava quase divertida, talvez considerasse o seu papel no meio daquilo tudo e isso, subitamente, se tivesse tornado um pensamento agradável. Quando voltámos, ensopados em suor, Luísa estava contrariada e quis conduzir, o que teve o dom de nos deixar mal-humorados durante algum tempo.
Luísa recolheu assim que chegámos. Maria, sentada à entrada da tenda, concentrava-se num livro, à luz de um candeeiro de pilha. Artém tirou do saco uma garrafa de gin que mergulhou na água fria e resolveu que faríamos uma fogueira. Já era bastante tarde quando conseguimos atear fogo aos lenhos. As miúdas dormiam a sono solto. Artém passou-me a garrafa ateada pelas chamas.
- Quem quer saber delas, se as apaparicamos querem logo decidir por nós, se não fazemos caso delas, amuam como crianças. Não respondi, ainda há um mês Luísa era uma peça importante num puzzle doméstico que também me envolvia. Acendi um cigarro e por um longo momento fiquei em silêncio. Artém, sobretudo, falou, de tudo e de nada, de vez em quando pregando-me um murro no ombro ou castigando-me as costas e rindo-se às gargalhadas. Por duas vezes, um possante chiu obrigou-nos a baixar o tom, desencadeando em Artém um chorrilho de impropérios, um tom abaixo. De qualquer modo, o diálogo não se prolongou mais do que a garrafa, enquanto um doce abatimento se apoderava de nós.
No dia seguinte, acordámos tarde. As miúdas já tinham tomado o pequeno-almoço e tomado um banho e Luísa quis regressar. Que não era aquilo o que ela tinha em mente quando sugeriu o fim-de-semana na serra era uma evidência. Artém sentou-se ao volante, Luísa ao lado, eu e a feia Maria no banco de trás. Mas a decepção de Luísa infectara o veículo e quando Artém, largando uma gargalhada, exclamou que tínhamos de repetir a luta de ontem, só eu é que sorri, quase a medo.
Já em casa, enquanto preparava uma bebida, dei comigo a sorrir de novo. A bela Luísa descobrira algo que todos os jogadores sabem, que normalmente se perde nos jogos de azar, e enquanto matutava nisto, saboreando a bebida, vinha-me à mente uma fogueira perdida na noite, reflectida numa garrafa de gin entre dois homens suados da luta.
Tínhamos que repetir aquela luta, poderosos e compassivos, competitivos mas amáveis. Era inevitável que o fizéssemos.

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