domingo

História com o Mercedes castanho


- Esse carro é meu.
O gajo, a perna esquerda dobrada para trás, mexeu os olhos sob os óculos escuros e fixou-o por um segundo sem se desencostar da parede.
- Quero-o, e apontou para o Mercedes 220D, castanho.
- Vai-te embora, velho.
- Eu compro-te o carro. Deste dez gramas por ele. São quinhentos euros. Pega. Dá-me as chaves.
O outro continuou sem se mexer. Ele estendeu-lhe as notas.
- Estás parvo ou quê, velhote?! Põe-te mas é a andar, a menos que queiras que eu te ajude.
- Quero o carro. Eu dou-te os quinhentos euros e tu dás-me as chaves.
O gajo desencostou da parede e acendeu um cigarro, enquanto olhava o velho com interesse. Tinham mais ou menos a mesma altura, mas ele era mais pesado. Olhou para os outros, todos os olhos estavam postos neles. Transeuntes passaram quase pelo meio deles e um autocarro surgiu na ponta da curva fazendo chiar as rodas.
- Queres levar o carro, velhote? Quinhentos não chegam.
- Dou-te quinhentos.
O outro encostou-se de novo à parede, as mãos metidas nos bolsos das calças. Ouviram-se risos, depois ouviu-se o silêncio nas mesmas bocas.
- Dou-te quinhentos… ou isto. Os seus olhos incendiaram-se numa expressão de aversão e, grotesco, o orifício prateado da velha Walther do exército brilhou na direcção do outro. - … e tu dás-me as chaves, de uma maneira ou da outra.
Os óculos escuros imobilizaram-se-lhe. O orifício da pistola ainda lhe apontava o peito e impunha um desusado silêncio à sua volta. Endireitou-se e a boca torceu-se-lhe num sorriso rígido, mas divertido, o olhar fixo, enquanto metia a mão no bolso. - Pega as chaves, velho, e guarda essa coisa. Ele, sem baixar o cano, passou-lhe as notas.
- Não voltes a fazer isto. Pode-se morrer disto!
- Da próxima vez, não virei para falar contigo. Já matei gajos melhores do que tu.



Passou no apartamento para guardar a pistola, verificou pela última vez o que estava dentro da mala e do saco de viagem, fechou-os e meteu-os na mala do carro e dirigiu-se a casa da ex-mulher. Luísa estava no jardim. Atravessou a casa de um lado ao outro e pela porta vidrada da sala avistou-a sentada num dos bancos a ler. A luz das lâmpadas agasalhava o céu e o jardim quase parecia encantado. - O João está cá? Luísa levantou os olhos do livro. Estava corada. - Não podes entrar aqui como se fosse a tua casa, Ernesto!
- Onde está o João, Luísa, só quero falar com o João.
Luísa deixou-se cair sobre o banco. - Está no quarto. Aconteceu alguma coisa?
- Nada de especial, não te preocupes, só preciso de falar com ele. Não te preocupes, a sério.
Voltou-se, atravessou a sala e subiu ao quarto do filho. Bateu na porta. João estava deitado na cama, de lado, as costas voltadas para a porta. Chamou por ele e o filho ergueu a cabeça que logo lhe descaiu para a almofada. Abanou-lhe o ombro e chamou outra vez. O estojo de inox estava aberto sobre a cama e a colher e a seringa pousadas na tampa caída para trás. Havia gotas de sangue no edredão.
- Vai-te lavar, disse-lhe. Vens jantar comigo.



- Como é que encontraste o Mercedes?
- Sei onde vais às compras. Dei umas voltas e tive sorte.
- A mãe não me deu dinheiro.
Ernesto olhou o semáforo parado no vermelho. A mãe não me deu o dinheiro, repetiu para si mesmo. E aqueles gajos que pediam nos semáforos, a quem a mãe não dera o dinheiro? Ernesto tentava passar à frente, saltar a pés juntos aquela ferida. O carro seguiu na direcção da Baixa. João, sonolento, olhava em frente, as pálpebras inchadas, lavradas de olheiras avermelhadas.
- Estou reformado. Hoje, fui pela última vez ao QG. - Vou deixar tudo. Fiz uma casa. Vou-me embora hoje mesmo. João olhou finalmente para o pai, mas o carro virara subitamente à direita e ele voltou-se para a frente, sem que se fixasse em ponto algum.
- E o vício?
- Se for preciso, vimos comprar.
João não respondeu. Nada tinham para dar um ao outro e também era demasiado tarde para que alguém pudesse verdadeiramente salvar ou demolir o outro. Seguiram em silêncio até ao restaurante. Ernesto levou-o ao mesmo restaurante onde iam quando ele era miúdo e estavam sozinhos, sem Luísa, mas jantaram calados. Apeteceu-lhe abraçá-lo, puxar-lhe os cabelos, desancá-lo, deixá-lo de cama, cerceado numa camisa-de-forças, depois ficou-se, os olhos fincados em João, a memória transportando-o para o jardim de Luísa. Aquele jardim que já conhecera e já não reconhecia mais, refúgio de histórias muito antigas que continuariam por certo a desenrolar-se para sempre, bem no centro da velha cidade, mesmo que não o pudessem tomar por protagonista, não já a ele. Crescia-se de cada vez que se destruía uma história maravilhosa. No fim não sobraria nenhuma, era uma história triste.



Passaram meses. Um dia, Luísa telefonou-lhe para lhe dar a notícia. Ernesto primeiro emudeceu. Não conseguiu chorar e a seguir teve um acesso de fúria, depois recusou ir à cidade, a menos que voltasse com João.
A lua cheia ia alta no céu. O vento batia-lhe com força na cara e atropelava tudo à sua frente. O homem fez frente ao vento, as pernas abertas e os pés fincados na terra, e o vento trouxe-lhe o rugido do mar, a espumejar lá em baixo, contra a falésia. Tinha pena. Mas não era responsável por aquilo. A sua vida tinha sido a que ele tinha conseguido ter. Um pai não tinha de arcar com os erros dos filhos como se fossem um prolongamento dos seus. Luísa, ele, algo se tornara impossível muito depressa, mas isso acontecera consigo, fora o seu casamento que ruía. Luísa não era mais responsável do que ele mesmo, nenhuma mãe podia ser responsável por viver numa casa vazia, cheia de recordações mortas. Haviam feito o que estava ao seu alcance, o que achavam melhor. Ali, na borda da falésia escarpada, o homem pensou como tudo era efémero e desejou ter todos os gestos de ternura de novo. Ser pai do João de novo. Fazer tudo ao contrário. Fazer melhor. A sua vida não fora a que ambicionara vir a ter. De repente, sentia-se distante de tudo e com medo. Mas continuou à espera do filho. Quando Luísa lhe telefonou pela segunda vez, quase um mês mais tarde, meteu-se no carro e foi buscá-lo, mesmo contra a vontade.
- Continuas com o Mercedes, foi o que João disse toda a viagem, o resto do tempo passou-o calado, como se não tivesse consciência da presença do pai.
Viu a estrutura de um circo que desarmava as tendas e que antes da noite teria levantado acampamento, figuras, todas elas empurradas pelo vento, em que tudo dependia de bons e maus ventos. Momentos houvera em que João quisera ser o filho perfeito de seus pais.



O candeeiro de pé estava aceso e mergulhava os recantos da sala numa penumbra plácida. Ernesto pendurou o casaco no cabide e tirou do bolso o pequeno saco de plástico e subiu as escadas com ele na mão. A porta estava aberta e um halo de luz escapava-se, empurrado pelo candeeiro na mesa-de-cabeceira. João estava deitado, coberto até ao peito e com os braços esqueléticos dobrados sobre a roupa. Era Outubro e não estava frio, mas João tremia compulsivamente.
Ernesto chegou-se à cabeceira da cama e repuxou-lhe o edredão e as mantas e ajeitou-lhe a almofada. João suava e os fios de cabelo colavam-se-lhe à testa pálida e pronunciada, tinha os olhos fechados, exagerados nas órbitas cavadas; sob as pálpebras, as pupilas estremeciam. Afastou e acariciou-lhe suavemente a testa e o cabelo com a mão e o filho abriu os olhos. Apeteceu-lhe dizer-lhe qualquer coisa, mas não falou, limitou-se a sorrir e a apertar-lhe a mão.



O homem sentou-se na cama e colocou na mesa-de-cabeceira a ampola que retirou do pequeno saco de plástico. Abriu a gaveta e pegou no estojo de inox. Junto da ampola, estendeu a agulha e a seringa. Fez todos os gestos meticulosamente, uns a seguir aos outros numa sequência harmoniosa. João voltara a fechar os olhos e tremia, então o homem levantou a ampola, fitou-a, espetou-lhe a agulha e encheu a seringa com o líquido incolor que rebrilhava à luz do candeeiro, finalmente pressionou o êmbolo até sair uma gota e pousou a seringa.
Procurou uma veia no corpo sumido. Espetou-lhe a agulha nas costas da mão direita. Quando acabou, as tremuras começaram a abrandar e pararam um minuto depois. As pálpebras do João quedaram-se sossegadas. O homem agarrou-lhe a mão e empurrou a boca contra a sua testa, com os olhos bem abertos, e só quando a mão do filho ficou inerte na sua é que ele descolou os lábios e enterrou o rosto na almofada por uma eternidade. Sentia uma dor insuportável. Lentamente, como se tivesse sido retirado para fora da agitação do tempo, olhou o rosto de cera do filho e guardou a seringa e a ampola vazias no estojo de inox, desceu as escadas e apagou o candeeiro de pé.
Na cozinha, enfiou o estojo num saco e meteu-o no lixo, pôs o casaco e saiu. Os braços pendentes, olhando o céu imensamente cego e a espuma suja das ondas. Cá fora, o dia parecia querer erguer-se precocemente e o vento acalmara. Estava fresco. Desceu à praia e caminhou na areia sem pressa, até serem horas para telefonar a Luísa.


De repente, sentiu muito frio, como se estivesse a chocar uma doença, sentiu que podia ser o frio de João, e sentiu que era necessário que chorasse, também era necessário que chorasse. E chorou.


(A.A.)

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