pequenas histórias de um pequeno símio que nasceu sem querer e que sem que também o queira irá um dia morrer
sexta-feira
A bela e o monstro
- Tirei as pestanas - disse ela - Não achas estranho? - perguntou.
- Que tenhas tirado as pestanas?
- Não, Álvaro. O facto de termos pêlo por cima dos olhos.
- A gente habitua-se a tudo... Também tinhas outros pêlos...
- Sim, mas mais nenhuns que me fizessem parecer uma máquina de varrer ruas.
- Dizias o mesmo dos pêlos do nariz, rotativas de um aspirador industrial...
- E esse problema está temporariamente resolvido.
-... como o dos fios de plástico das máquinas de varrer ruas, é isso, não é?
- Sinto-me melhor assim.
- Mas, Maria Manuel, retiraste os últimos pêlos que ainda tinhas...
- Eram uma agressão, Álvaro. Algo que é 'como se nós', mas que não somos nós. Como as árvores não são a terra.
- Pensava que seriam uma protecção natural...
- Indícios é o que são, Álvaro... Algo que se tem para cortar. Por debaixo da pele é ainda o animal que excede a lâmina; a mínima distracção e o bicho retomará posse...
Conhecia aquela linha de argumentação. A seguir, ela iria recordá-lo de que a evolução se fizera contra o pêlo, mais do que pela posição vertical ou o polegar oponente; nem mesmo o incremento do volume craniano evidenciava uma mesma continuidade e constância; no fim, como sempre fazia, acrescentaria:
- É por ti que o faço, é para ti que me quero perfeita.
E Álvaro ficava ali, a olhá-la até que a sombra desaparecesse. Não conseguira deixar de a amar, em suma, estava tão doente como ela.
-... somos sempre o velho antropóide, Maria Manuel, ainda disse. Mas com Psique não se discute.
Nessa noite e seguintes Maria Manuel dormiu com os olhos abertos.
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