quarta-feira

A árvore


A primeira lâmina faz-lhe uma incisão no rosto. Outro golpe fá-lo cair de joelhos. Ainda se ergue, aberto à terceira estocada que cravará a flecha no bolbo de sangue, depois deixa-se ficar, já solto, a olhar os vultos que escurecem. Tem um coração atravessado na face direita, abaixo do olho. Pelo pescoço sobe-lhe um dragão chinês; os braços flamejam de ornatos florais a preto e vermelho entrelaçados e cortados por figuras. É uma árvore nova, terá talvez dezasseis. Tento ajudá-lo enquanto ele leva a mão direita a cara que está viva de sangue. Mas ele empurra-me, enquanto se recosta para trás, de encontro à árvore, e aponta um dedo à barriga.
- Esta foi a primeira, soergue a camisa acima do umbigo e aponta uma coroa de espinhos que abraça a palavra mãe. - Depois foi esta e esta, e aponta com o sangue. - Tenho a vida desenhada no corpo, amigo, acontecimento a acontecimento, não acredita? - Aqui foi a correcção, ali, apontou reticente, a morte do velho, depois sorri. Caiu ao rio, mesmo ali em baixo, ali junto à barraca, um odre de vinho, fodeu-se . - Os amores e os mágoas, está a ver-me bem, tenho tudo, tudo aqui, e bate no peito. Agora, fossei uma cabra e marcam-me o rosto, está certo. Era mais um parágrafo, pensei.
- O sangue não me assusta, amigo, não enquanto o puder ver.
De repente, inclina-se para a frente e fica curvado com a boca aberta, vem tudo fora. Debruçado sobre a regurgitação enquanto continua a vomitar olha aquela mistela acídula e mole. Enquanto tento ampará-lo e o cheiro azedo da poça de comida meio digerida me força as narinas, dou-me conta de que me tratou duas vezes por amigo. Ele cospe com repugnância e continua:
- … foi a primeira a sangue frio, amigo, filhos da grande puta, disse como se me devesse desculpas, e as botas todas cuspidas… raio.
Ouve-se a sirene, ele ainda esboça um salto, depois as luzes cegam-no.
- É a bófia?
- Não, é o INEM, amigo. Era a minha vez. Ele então deixa-se cair por terra, lenta, mas de modo nenhum desamparadamente e volta a encosta-se à árvore. Gotas de mercúrio cintilam no solo húmido metralhado pelas luzes da ambulância. Desvio-me. A sirene silenciara. Enquanto o soerguem a palavra amigo fende uma última vez a noite. Mas já mal a ouço.

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