sexta-feira

O velório


Primeiro susto:
Entro e caio em cima do cadáver. A câmara ardente era no átrio, logo depois da porta de entrada. As três velhinhas movem-se ligeiramente para o lado, incomodo, dispõem-me uns olhos inquiridores, olhos a tentar ler-me a alma como se fitassem uma radiografia. O resto era choro surdo. O dos próximos e dos velhos que a si próprios choram. E um tom de preto, em aguada.

Segundo susto:
- Dás-me um beijo?
- Dou, Paula, claro, mas porquê?
- Porque me apetece que me dês um beijo? Porque… que idade tens?
– Trinta e cinco…
- Eu tenho quase cinquenta, filho, quase cinquenta.
- Sabes que …
- … que não gostas de beijos.
- Gosto, não é isso...
- Então, cala-te. Chega cá a boca que eu deixo que voltes para a tua mulherzinha.
- Não há mulherzinha, há a Leonor.
- O meu pai morreu, faz quatro meses, tenho quase cinquenta anos, achas que quero saber o nome da tua mulher vinte anos mais nova do que eu?
- E porque achas que eu… porquê eu…?
- Não acho. Não faço intenções de beijar o primeiro que me aparece.
- Porquê eu, Paula?
- Não sei. Mas senti-me cortejada e correspondi.
- Cortejada… por mim? Durante o velório?
- Não tiraste os olhos de mim no café e ainda não sabias se me verias no velório. Entrei e os teus olhos perderam o descanso. Porque te ofereceste para me levar a casa?
- Paula, por delicadeza, cortesia. Sou padrinho…
- Querias comer-me?
- Paula…
- Querias?
- Para ser sincero não, por favor …
- Encosta aí, há ali um café, vamos beber uma cerveja. Depois deixo-te ir para a tua… Leonor, é isso.
- Dá-me um beijo bom.
Dei-lhe um beijo, um beijo bom. Bebemos a cerveja. Levei-a a casa, não subi.

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