sábado

40 euros


- Rua do H., por favor?
- A próxima à direita.
Alberto vira à direita e o laboratório enfia-se-lhe olhos adentro. Está desempregado há dois meses numa cidade estranha e traz o anúncio consigo. Pára a olhar a ampla porta da entrada. Duas manchas gotejam-lhe sob as axilas e sente molhado acima do cinto. Entra. As enfermeiras têm olhos que se colam nos dele e se afastam depois em trajectórias fixas. Cheira a éter e vagamente a sopa de hortaliça.
A seta aponta o guichet. Remexe nos bolsos, puxa o anúncio da algibeira, desdobra-o cuidadosamente e pousa-o no balcão. Fora pelo anúncio que Alberto viera e elas estavam ali também para isso. Que sim, faz a enfermeira, e dá-lhe o registo a preencher. Alberto sente o rosto hirto a descontrair-se-lhe. A enfermeira enverga a bata branca e os olhos azuis como se fossem intercambiáveis e ele, sem saber porquê, sente-se aliviado.
Seis ou sete folhas preenchidas e rubricadas, a assinatura final. Entrega-lho com um gesto seguro. Ela revê tudo e onde Alberto escreveu Branco corrige, não risca, escreve Moreno por cima, com força, depois volta a rever, agora mais rapidamente, e carimba. – Venha comigo, diz e apesar dos seus olhos azuis tem claramente sotaque, Alberto não consegue perceber se indiano se latino. Entram por outra porta, incapaz de mexer os lábios Alberto vê a enfermeira abrir a cápsula de plástico e a seringa gorda a ficar vermelha a pouco e pouco, sente afrouxar o laço e o cheiro da mão da enfermeira, que estende o algodão humedecido e pressiona de leve, colore-lhe as narinas.
- Pronto? Alberto tem a sensação de que a cara se lhe enrija quando diz que sim, com o dedo calcando o algodão. Mas logo quase que ri; só mesmo ali, onde as mulheres são quase ruivas de tão alvas, ele podia ser achado por moreno. E, no entanto, não ri, o seu silêncio recente esconde-se demasiado no seu sorriso.

No fundo do corredor, a casa de banho é pequena. As três paredes que enchem a sua visão são pintadas de um pastel, desmaiado e nauseante cortado por uma acanhada barra de azulejos amarelados. Um rolo de papel sobre o autoclismo, um air-freshener, Mountain Pine, um pequeno sabão verde e um cesto de papéis, bastante cheio. Não há toalha, só o papel. A barra amarela rodeia-o à altura dos olhos. Por cima um espelho demasiado pequeno para ser indiscreto, mais abaixo algumas revistas pornográficas sobre a napa vermelha do banco. A porta fecha-se, Alberto pega numa das revistas.
A maldita sinalização de emergência está avariada e pisca impaciente, à volta as sombras avivam-se e metem-se-lhe pelos olhos semicerrados, a piscar para ele, que não consegue abstrair-se. Puxa outra revista, depois outra. Tinha que estar avariada, a porcaria da placa. Ouve passos, depois deixa de os ouvir na distância, a retrete range. Quantos antes dele ali se teriam sentado obedientemente, brandindo a acanhada retrete? Arranja-se, à procura de melhor apoio. Vem-lhe à memória o gemer nocturno das camas de ferro pintado, de aspecto ascético no chão vazio, a chama, como que movida por um estranho vento que soprasse de baixo para cima, dos candeeiros a petróleo a avivar as sombras de um quarto esconso, num segundo andar. Onde? Agora que importa? Incapaz, ouve de novo passos, as vozes de duas enfermeiras, depois nada, tem a sensação que toda a cabeça lhe diminuiu até ao tamanho de uma cabeça de alfinete.
Por momentos julgou que ia vomitar. Colocou as revistas no banco e deteve-se a olhar estupidamente para as mãos que tinha abandonadas nos joelhos, imobilizado. Ficou assim durante muito tempo; o assunto, esse, virava e revirava no seu pensamento.

Súbito, como se quase nem notasse o que estava a acontecer-lhe, ergue-se, aperta mecanicamente o cinto, ajeita o casaco e encostando com firmeza os braços ao corpo percorre em poucos segundos o corredor que o separa do balcão. Detém-se a metro e meio de distância, em frente ao relógio central, a observar o ponteiro pequeno avançando lenta e aos solavancos para as onze. Quase quarenta e cinco minutos! Sente o rosto que ruboriza. A enfermeira mira-o, depois ao receptáculo vazio e polida sorri enquanto veste a luva. – Lamento. O frasco acaba por desaparecer no interior do balcão, nas mãos enluvadas de uma segunda enfermeira muito magra, seca e de olhos tão profundamente afundados nas órbitas quanto severos. Já cá fora, Alberto encosta-se ao muro e acende um cigarro, deitara fora vergonhosamente 40 euros, mais 40 euros por sessão, mas não há ninguém para lho recriminar. Só um anúncio amachucado na algibeira e um ruído cavo no estômago.

sexta-feira

Conversa


- Como apareceram as palavras, tio Anacreonte?
- Ninguém sabe, mas há muitas teorias.
- E o primeiro homem, tio?
- Também ninguém sabe ao certo, mas há algumas teorias.
- E teorias, tio, sim, o que são teorias?
- Digamos que são modos sistemáticos de olhar o mundo, não com os olhos, mas com o espírito.
- E o espírito, o que é o espírito, tio Anacreonte?
- Ao certo, ao certo, ninguém sabe, Sextus, mas há muitas teorias.

Sequência II - história de amor - (Courbert e ready made de moi - tabuleiro de fogão, altas temperaturas e adiposidades várias)


quarta-feira

A árvore


A primeira lâmina faz-lhe uma incisão no rosto. Outro golpe fá-lo cair de joelhos. Ainda se ergue, aberto à terceira estocada que cravará a flecha no bolbo de sangue, depois deixa-se ficar, já solto, a olhar os vultos que escurecem. Tem um coração atravessado na face direita, abaixo do olho. Pelo pescoço sobe-lhe um dragão chinês; os braços flamejam de ornatos florais a preto e vermelho entrelaçados e cortados por figuras. É uma árvore nova, terá talvez dezasseis. Tento ajudá-lo enquanto ele leva a mão direita a cara que está viva de sangue. Mas ele empurra-me, enquanto se recosta para trás, de encontro à árvore, e aponta um dedo à barriga.
- Esta foi a primeira, soergue a camisa acima do umbigo e aponta uma coroa de espinhos que abraça a palavra mãe. - Depois foi esta e esta, e aponta com o sangue. - Tenho a vida desenhada no corpo, amigo, acontecimento a acontecimento, não acredita? - Aqui foi a correcção, ali, apontou reticente, a morte do velho, depois sorri. Caiu ao rio, mesmo ali em baixo, ali junto à barraca, um odre de vinho, fodeu-se . - Os amores e os mágoas, está a ver-me bem, tenho tudo, tudo aqui, e bate no peito. Agora, fossei uma cabra e marcam-me o rosto, está certo. Era mais um parágrafo, pensei.
- O sangue não me assusta, amigo, não enquanto o puder ver.
De repente, inclina-se para a frente e fica curvado com a boca aberta, vem tudo fora. Debruçado sobre a regurgitação enquanto continua a vomitar olha aquela mistela acídula e mole. Enquanto tento ampará-lo e o cheiro azedo da poça de comida meio digerida me força as narinas, dou-me conta de que me tratou duas vezes por amigo. Ele cospe com repugnância e continua:
- … foi a primeira a sangue frio, amigo, filhos da grande puta, disse como se me devesse desculpas, e as botas todas cuspidas… raio.
Ouve-se a sirene, ele ainda esboça um salto, depois as luzes cegam-no.
- É a bófia?
- Não, é o INEM, amigo. Era a minha vez. Ele então deixa-se cair por terra, lenta, mas de modo nenhum desamparadamente e volta a encosta-se à árvore. Gotas de mercúrio cintilam no solo húmido metralhado pelas luzes da ambulância. Desvio-me. A sirene silenciara. Enquanto o soerguem a palavra amigo fende uma última vez a noite. Mas já mal a ouço.

segunda-feira

A consulta


à Luísa Ribeiro

- A minha filha tem uma doença irremediável. Sei o que isto quer dizer, por isso digo irremediável.
- Mas eu de momento não tenho nenhuma doença irremediável. Estou sentada e olho para as mãos que escrevinham sem parar.
- Continue, por favor...
- Na minha filha a doença operou uma espécie de iluminação mística. Uma necessidade de se isentar da derrota física e moral.
- Eu percebo, eu morro. Mas eu não sou o seu ursinho de peluche. E estou a pensar fugir de casa…
- Eu não me queixo. Por norma, não me queixo. A pequenina não tem culpa. Mas por vezes penso, penso como seria a minha filha se habitasse um daqueles edifícios em que cada sombra no portão é uma esperança e um medo. Penso, como seria a minha filha se...
- Reconheceria que não tem tempo para a minha saúde? Que o seu declínio iluminado dá cabo da minha vivacidade? - Estou a ser egoísta? - Mas não devo mentir, não é assim? O quadro à minha frente é um campo de trigo feliz, com uma ceifeira mondando felicidade; atrás os fardos acumulam-se. Podia perder-me em interpretações...
- Devo dizer tudo, tudo, o que nunca disse sequer a mim própria, não é?
- Só assim podemos continuar …
- … que eu quero fugir de casa? FUGIR. Que um dia eu vou fugir de casa e voltar a pintar as unhas? - Isto não se diz, pois não? - Seutor, que imagem está a fazer de mim?
- O que irá ser de mim?

sábado

O leão


Do fundo da sala, Hélio administra a porta de alumínio. Do lado de fora, à chuva, a fila de putos. Um dos mais velhos, talvez dezassete, é o primeiro da fila, cabelo curto molhado, água escorrendo pelo casaco de couro e zippers, as pernas claras rasgadas por tiras de ganga preta, fivela cinza prata, correntes a rebentarem dos bolsos.
Graziela Mestre desenha os catetos e a hipotenusa, usa uma régua de quadro de madeira e fala de Pitágoras. Graziela Mestre quer a atenção da sala e diz de favas, de música, de potes de barro, enquanto evita olhar o ajuntamento que alastra pela banda de coberto numa algazarra imperturbada pela aula. De passagem, fixa os olhos em Hélio. Nesse momento, ouve-se o som estridente da campainha. Hélio soergue-se, olhos nos olhos negros da professora, e a sua mão direita, rápida como uma ponta e mola, bate um grosso maço de notas no tampo da carteira. - Quanto tem ao fim do mês, Professora?
Abre bruscamente a porta de alumínio envidraçada e fecha-a, sem realmente a bater. Parado no degrau por um momento, Hélio parece pensar. Graziela Mestre fica a olhar enquanto os putos rodeando Hélio se aproximam e se afastam, cada um ao seu caminho de chuva. Do lado de lá da vidraça, Hélio volta-lhe os olhos, talvez por delicadeza. Ali, torres aLx, ninguém bufa e a coragem pode ser a última fraqueza.
Enquanto fuma à porta do estabelecimento, sob chuva cerrada, Graziela Mestre evita pensar, mas a imagem de um leão desenha-se-lhe no espírito .

Queres?



para o Tozá

Aqueceu, desfê-la ferindo-a com os dedos, misturou com um pouco de tabaco, fez um filtro com as orelhas do box e enrolou.
- Porque devoras o chocolate? - perguntou Amir.
- Refrear o mundo não será motivo suficiente, Amir?
- Mas eras tu quem insistia na maleabilidade do mundo, na sua intrínseca mobilidade, na inevitabilidade da luta…
- Estar vivo e permanecer é uma luta, Amir, mas, em certa medida, podemos escolher os adversários. Como podemos trabalhar a diferença entre a taça erguida e o cenho carregado.
- Estás mudado.
- Não, Amir. Os velhos não deixam de brigar, mas o modo de se baterem tem de mudar - não é apenas a crença na vitória que se torna débil num velho, é a própria diferença entre tragédia e comédia que se esbate.
- Queres?

quinta-feira

Ab origo


Compreendendo que a parra pouco agasalhava,
o animal mortal mais rapidamente acercou o vinho.

Contabilidade


No dia em que bebeu doze cervejas quase sem notar Abel parou e pôs-se a pensar.
Quem bebe doze, bebe vinte e quatro, pensou Abel, e pela primeira vez pensou se devia parar.
No dia seguinte, bebeu treze. No outro catorze. Ao terceiro dia, Abel decidiu deixar de pensar e foi comprar uma náquina de lavar.

segunda-feira

Cinco doses


A parte superior do formulário pedia dados básicos. Depois vinham os dados relativos ao acontecimento: altura do homem, aspecto, sinais, rua, hora, arma, etc. A nada soube responder com concisa precisão. Sequer sabia se o homem tinha barba.
Eram sete e trinta da manhã. A travessa do C. é uma pequena rua metida entre um tapume, à direita, suspenso dos cartazes sempre novos que ali se amontoam, e, à esquerda, o deserto que àquela hora era o centro comercial onde começava a cidade. Dona Eulália avança, travessa abaixo, carteira ao ombro, picotando os quadrados visíveis de granito. Vai Dona Eulália pela calçada, vai disforme e não segura, quando de lado algum, eis como de bosques o fero, o meliante lhe salta a caminho e na mão o gume do aço que luzia.
– Tudo para cá, não quero fazer mal!
Dona Eulália tinha cinco euros. Era nada.
- … esse colar de ouro.
– O colar não, por favor, deu-me a mãe que tenho morta, vai de dizer-lhe a Eulália. Era um colar de ouro com uma cruz modesta mas cravejada, no género prenda de baptizado.
- Preferes morrer a dar-me um fio, mulher?
- O colar não, por favor …
Doeu tirar-lho, cortei-a, foi na mão e acho que no braço, quando a pauta tentou agarrar-me. Por causa de um fio, a filha da pauta. Como é que um gajo vai adivinhar, sim, como? Atestei-lhe com a cruz na testa até sangrar, quando a afastei era autêntica a tatuagem.
- É por isto que queres morrer, por cinco doses? – gritei-lhe. Mas ela já não ouvia. Deixei-a, não gosto de matar.
- Dona Eulália …
- Dona Eulália? Temos de lhe fazer uma análise ao sangue, importa-se de vir connosco?

sábado

O monge


Manhã cedo, o Sr. A. e o Sr. B. subiam a travessa de C., quando, coisa nunca vista por ali, na sua direcção, mas a descer, progredia um monge. O homem, por aquelas bandas, só podia estar perdido.
Ávido, pleno daquilo a que se chamaria, autrefois, 'uma concepção agónica da vida'. O Sr. B. dirigiu-se-lhe e esbofeteou-o. Depois, como se arrependido, rojou-se pelo chão suplicando lhe batesse o monge por sua vez, assim o redimindo de tanto pecado. Como o monge recusasse, o Sr. B. pregou-lhe novo par de estalos e a cena renovou-se com o Sr. B., já soluçante, implorando a coça merecida. De novo o monge permanecia na recusa e de novo se repetia o lance e o carpido. O Sr. A., boquiaberto, assistia.
A certa altura, a cera estourando-se-lhe, o monge dispara ao estalo e ao murro, deixando o Sr. B. prostrado, o queixo por terra.
O Sr. B. ainda faz um gesto de reconhecimento. Mas o monge declina. Que não tinha sido nada. Que lhe concedia a expiação, como a concedera a si próprio em oração. E continua a descer a calçada, um pouco distraído, seguramente em melhores cores.
O Sr. B. sorria, mesmo se por terra, quando o Sr. A., readquirindo o dom da mobilidade, dele se aproximou. Era um sorriso de anjo, certamente, mas um sorriso incerto, onde um amargo de boca luzia em meio ao contentamento.

Naquele instante, dois ucranianos que desciam a travessa deitaram-lhe os olhos, depois prosseguiram rumo à rampinha, demasiado apressados.
Satisfeitos, apanharam os olhos. O Sr. B. guardou-os como recordação.

sexta-feira

Glosa


Condorcet, o paradoxal filósofo da liberdade mecânica, não podia deixar de se embrulhar em contradições. Não a mais pequena, mas de modo algum um seu exclusivo, foi a identificação entre iluminação e filosofia.
Hoje, glosando, diríamos talvez com maior finura: ‘Toda a sociedade que não é iluminada pelos charlatães, é enganada pelos filósofos’. Há, antes de mais, objectando a Platão, que inocentar o feliz pantomineiro do maneio das suas marionetas.

O velório


Primeiro susto:
Entro e caio em cima do cadáver. A câmara ardente era no átrio, logo depois da porta de entrada. As três velhinhas movem-se ligeiramente para o lado, incomodo, dispõem-me uns olhos inquiridores, olhos a tentar ler-me a alma como se fitassem uma radiografia. O resto era choro surdo. O dos próximos e dos velhos que a si próprios choram. E um tom de preto, em aguada.

Segundo susto:
- Dás-me um beijo?
- Dou, Paula, claro, mas porquê?
- Porque me apetece que me dês um beijo? Porque… que idade tens?
– Trinta e cinco…
- Eu tenho quase cinquenta, filho, quase cinquenta.
- Sabes que …
- … que não gostas de beijos.
- Gosto, não é isso...
- Então, cala-te. Chega cá a boca que eu deixo que voltes para a tua mulherzinha.
- Não há mulherzinha, há a Leonor.
- O meu pai morreu, faz quatro meses, tenho quase cinquenta anos, achas que quero saber o nome da tua mulher vinte anos mais nova do que eu?
- E porque achas que eu… porquê eu…?
- Não acho. Não faço intenções de beijar o primeiro que me aparece.
- Porquê eu, Paula?
- Não sei. Mas senti-me cortejada e correspondi.
- Cortejada… por mim? Durante o velório?
- Não tiraste os olhos de mim no café e ainda não sabias se me verias no velório. Entrei e os teus olhos perderam o descanso. Porque te ofereceste para me levar a casa?
- Paula, por delicadeza, cortesia. Sou padrinho…
- Querias comer-me?
- Paula…
- Querias?
- Para ser sincero não, por favor …
- Encosta aí, há ali um café, vamos beber uma cerveja. Depois deixo-te ir para a tua… Leonor, é isso.
- Dá-me um beijo bom.
Dei-lhe um beijo, um beijo bom. Bebemos a cerveja. Levei-a a casa, não subi.

segunda-feira

Coincidência


Olha-la, da janela. Tipo Fanny Ardant, esguia, pernas bem roladas, tesas, e ri ali na esquina. Perde o pé, retoma o cimento rasgado a fios, junta os joelhos, o pé já fugindo de novo, e ri.
É nova na rua, não sabes se é uma primeira vez, claramente uma primeira semana. Está exageradamente sedada e ri, é um riso que atiça. Pára um Honda Civic metalizado, ela entra e o carro desaparece da janela. Fechas o estore.
Já alto o sol, café a olhar o mar, jornal aberto, surpreende-la que emerge na areia desgrenhada, sapatos de salto na mão.
Já não periclita em pés de agulha como ainda há pouco. Entre os rochedos, firme, não pressente os olhos que lhe escoltam as pernas rijas, os músculos tesos que escalam o paredão. Limpa a areia das pernas, sacode o cabelo, ajeita o rosto poeirento e põe os sapatos sem se sentar. Ainda a vês que atravessa a avenida e ajeita o vestido. Pagas o café. Queres cruzar-te com ela, queres vê-la de perto, vê-la quando acorda.
- Duas de vinte - ouves, ainda mal te abeiras do passeio. Tem o cabelo castanho farto, o vestido aberto nas costas e sob a pele macia todos os músculos estimulantes da atenção.
É quase meio dia. Depois o Audi arranca lentamente e vira à direita.

domingo

Saturday night fever


Suspiro Pacheco, 38 anos feitos há oito dias, está no escritório e deita a mão para a descansar. Súbito, nem teclado, nem security option, nem reinitiate. Uma fortíssima dor de cabeça a puxá-lo para trás e a arremetê-lo para a frente, os dedos a mexer por espasmo num juízo próprio e remoto e, já sem remédio, a cabeça a tombar, solta, entre o V e a vírgula. O gato não o lambe porque a janela está fechada. Os pais, cada um no seu maple de couro, sorriem com a última situation comedy da 8. Passa pouco das 10 da noite e é uma sexta-feira.
Três dias depois, foi Sócio quem pôs a chave à porta. A cabeça de Pacheco pesa no teclado sem qualquer fio de sangue, a boca aberta parece engolir ar e os braços tombam. A gravidade não tem falhas. O écran ainda dardeja. Por um momento, Sócio não mexe um músculo. Depois, trata de se desembaraçar da garrafa de Ballantine's e dos papelinhos, despeja o cinzeiro atulhado, percorre e esvazia os bolsos e as gavetas. Por fim, pega no telefone.
- Sr. Polideuco?

Houve que quebrar-lhe as pernas e os braços. Três homens sentaram-se-lhe em cima para endireitar a coluna em conformidade.

sábado

Nada


Estava desesperado. Hesitou entre atravessar-se no percurso de um comboio e atirar-se da ponte.
Atirou-se do comboio, passava este sobre o rio. Os mortos não o acolheram.
Regressado à superfície, não se lembra de nada.
Nem do desespero de que se lançara. Nada.

O vidro


- Vamos lá a acordar, nina. Chega de boa vida.
A nina estremunhada baloiça a cabeça, depois arrasta as mãos pelos olhos.
- Mas ... não é suposto acordarem-me.
- Nem ai nem ui - irritou-se o anão - toca a levantar, saiu-nos uma galdéria. Estamos nisto há ano e meio e nem príncipe nem sopa de ervilha seca.
- ... perceba menina - disse outro anão - cama e roupa lavada, o soro, a mudança do penso, os cateteres, a algália...
- ... e a porcaria do vidro, sempre sujo - disse o segundo anão.
- ... sem vocês eu não seria mais do que um músculo coagulado num alforge.
- Ficava-nos mais em conta! - vociferou o quarto anão.
- Está bem, já percebi, acende um cigarro nervoso, eu saio de dentro do vidro... vou-me com os animaizinhos e o passaredo.
- Olha! Não é o príncipe quem vem ali? - exclamou o quinto anão
- Oh, logo agora que acendi um cigarro.
- Tratem de meter a Branca de Neve dentro do vidro, rápido gente!
- Apaga o cigarro! – ordenou-lhe o primeiro anão.
- Sujaram o vidro. – lastimou o segundo anão.

segunda-feira

Jericó


Uma vez, Manuel Maria presenciara o delírio de um homem, elefante velho.
O homem começava a descer a avenida cheia de térmitas, as mãos na cabeça e sobre os ouvidos, e desata a berrar desalmado. Retumbante, chegava à praça, garrafa no bolso de trás da calça, as mãos não cessam de tremer, dá duas voltas e enceta já percurso inverso, rua acima, a vociferar assustadoramente - um gritar intervalado apenas pelos surtos de ar.
A cidade é figura em minguante, a investir em sentido contrário como pode. O ruído da cidade a solver-se num silêncio de arrepio. Os automóveis a deslizar numa tristeza parada porque o homem berra, sempre galgando a rua e a berrar, e o grito é medonho, virtualmente contínuo, e os homens baixam os olhos para o interior dos casacos, as mulheres nos tecidos, e, curvando-se, cedem, terrificados - o elefante, desembestado, a face absorvida no fundo da rua, berrava por eles.

Alguém informou do café na outra rua. Munida de bastões e de redes, a polícia carrega no galope. Enquanto presencia os cavalos da polícia constrangerem o elefante velho, Manuel Maria não pôde evitar pensar em Jericó.

sábado

A ravina


Ele tinha andado alguns passos ao luar quando desembocou naquela mão. Ela espetava-lha na cara e deixava-a lá por um instante. Logo a seguir outra que o deixa quase tombado. Ele desata a berrar nomes e agarra-lhe um braço. Ela marca-o pela terceira vez. Tem uma mão pequena. Para ali é a ravina, depois o mar. Ele está bêbado e ela berra-lhe.
- Se te queres matar, mata-te! Mas amanhã, quando estiveres sóbrio.
Agora ela agarra-o pelas golas do casaco. Ele é maciço, mas permanece curvado. O homem urra. E ela berra-lhe novamente.
- Amanhã.
De pé ele parece um pouco de granito. Os olhos por terra. Então ela volta a a levantar a voz.
- Quero ver com estes olhos, à luz do dia - para ela a autenticidade não prescindia da luz dos olhos. Depois desapareceram na noite e não se ouviu nenhum outro brado, apenas o riso das rajadas e um vento que engrossava.

sexta-feira

A bela e o monstro



- Tirei as pestanas - disse ela - Não achas estranho? - perguntou.
- Que tenhas tirado as pestanas?
- Não, Álvaro. O facto de termos pêlo por cima dos olhos.
- A gente habitua-se a tudo... Também tinhas outros pêlos...
- Sim, mas mais nenhuns que me fizessem parecer uma máquina de varrer ruas.
- Dizias o mesmo dos pêlos do nariz, rotativas de um aspirador industrial...
- E esse problema está temporariamente resolvido.
-... como o dos fios de plástico das máquinas de varrer ruas, é isso, não é?
- Sinto-me melhor assim.
- Mas, Maria Manuel, retiraste os últimos pêlos que ainda tinhas...
- Eram uma agressão, Álvaro. Algo que é 'como se nós', mas que não somos nós. Como as árvores não são a terra.
- Pensava que seriam uma protecção natural...
- Indícios é o que são, Álvaro... Algo que se tem para cortar. Por debaixo da pele é ainda o animal que excede a lâmina; a mínima distracção e o bicho retomará posse...
Conhecia aquela linha de argumentação. A seguir, ela iria recordá-lo de que a evolução se fizera contra o pêlo, mais do que pela posição vertical ou o polegar oponente; nem mesmo o incremento do volume craniano evidenciava uma mesma continuidade e constância; no fim, como sempre fazia, acrescentaria:
- É por ti que o faço, é para ti que me quero perfeita.
E Álvaro ficava ali, a olhá-la até que a sombra desaparecesse. Não conseguira deixar de a amar, em suma, estava tão doente como ela.
-... somos sempre o velho antropóide, Maria Manuel, ainda disse. Mas com Psique não se discute.
Nessa noite e seguintes Maria Manuel dormiu com os olhos abertos.