E foi assim que tudo aconteceu, Sr. Dr., eu morava ali, eu moro ali vai para dez anos, e ele escolhera justo a minha porta, o alpendre um degrau acima da rua, lado a lado com a porta da sapataria. E berrava desalmadamente, Dr. e era: Senhora, senhora, dê uma esmolinha. E depois: uma esmolinha ao doentinho, por quem tem lá em cima. E ainda: ó minha Senhora, ó irmão, uma esmolinha. E assim por diante, monocórdico, bajulador, exalando um ar cuidadosamente pestilento, uns olhinhos minúsculos e rápidos, os vidros baços, escarninhos.
Senhora, Senhora… ó minha Senhora.
Uma esmola de quando em vez é necessário para se estar de bom nervo, assim de soslaio, como um certo treino de bem-fazer, e pouco, que os pobrezinhos, valha-nos Deus, são eles e as mães, depois, nunca há-de faltar nicho para tanta boa vontade, Sr. Dr., o senhor sabe, uma esmolinha traz com o alívio a redenção, uma agradável sensação de que Deus nos piscou o olho, não é assim? Dá e receberás, lá diz o Livro. Não é? Os transeuntes são felizes no trocar, salvam-lhes o dia, os pedintes, e assim lhes agradecem, e está bem, pensam as gentes, largando a moeda e alçando os olhos ao céu. Está feito! dizem, e o que está feito é o bem, pensam, e o bem é imenso, depois é vê-los radiantes, os olhos brilhando, seguirem as suas construções de céu, sacolejando já os guarda-chuvas, ora cantarolando num bem-aventurado passo: Ai, que bom eu sou! Ai, que bom eu sou. Ai, ai, ai, que bom eu sou!
Deus, nosso Senhor, lhe arranje um cantinho... minha Senhora. Ai, que boa Senhora! Dê esmolinha Patrão.
A camisa de alças caía-lhe dos ombros exibindo o peito branco, sem sol, muito branco e gordo, uns poucos pêlos empinando uma cidadela rala e rebentando no roçar da camisa quase alva. O puta engordara desde Dezembro, Sr. Dr., aquele bocado grasnante, sem membros, tinha a ligeireza das gralhas no voo e o porte de um elefante velho, a voz de uma hiena. Mesmo assim, exibia orgulhoso a sua nudez ao mexerico e esfregava-se feliz, o pulha, a entrar-me nos nervos.
Vem daí, chamava o Mil-dedos, remexendo os cotos superiores. Mortos em guerra, ouvira dizer. Mas nada demovia o Tónio Marselhesa. E o Mil-dedos vai de voar por si. Sabe que o Tónio Patife trabalha o dia, todas as horas, peça por peça. Amolecera no trabalho, diziam uns. Um mestre, o Tónio, diziam outros. E o Tónio fazia a novena, emocionava-se como se Deus lhe soprasse a cantilena directo nas fuças e sofresse verdadeiramente de suas simuladas misérias. Ai, Dr., quanto suspirei eu por vergastar aquele braço estendido, aqueles cotos dilatados, aquele buraco húmido, as ladainhas a entrar-me nos nervos.
Senhora, senhora dê esmolinha... Ó patrão, por quem tem lá em cima... Uma esmolinha ao doentinho... Senhora, senhora... É necessário ser-se bom de coração. Ou surdo. Todos os dias, Sr. Dr., de manhã à noite o carcaça velha a grunhir, a arrepiar os pregões, ali prantado, massajando a multidão com estribilhos fulminantes, os frouxos tocos esparramados no passeio a terminar em joelhos venenosos, transidos como árvores podadas, embriagado do seu entoado ladrar. Todo o santo dia, ali, Sr. Dr., todo santo dia no alpendre um degrau acima da rua, entre a minha porta e a porta da sapataria, a entrar-me pelos nervos, a perfurar, a atravessar. Por Deus e por quem tem lá em cima, verdade verdadinha… Deus, nosso Senhor, lhe arranje um cantinho... irmão.
Se ao menos o pulha gozasse de hora de descanso, Sr. Dr., ou se o homem se apartasse duas vintenas de metros e aparcasse lá para o fundo, na embocadura da praça. Mas não. Aquele pedaço de sebo mal corado pelo sol tinha que estar ali, ali mesmo, entre a minha porta e a porra da sapataria, e, o pulha, que nem abotoara a braguilha, e um pastelinho de rapaz a passar e esbugalhado a repuxar insistente o braço gordo da mamã, absorta nas luzes da praça, como a uma alça de autoclismo, e arregalando o dedo ruborizado, a apontar, a apontar. E a mamã a dar com a esmola quase o braço, a nívea mama a baloiçar no nariz do pulha, Sr. Dr., e o pulha a perdigotar como a boca de um cão esganado, ali aparafusado ao mamário e a perdigotar.
Foi então, Dr., foi então que tudo se me iluminou. Assim, detrás para a frente. O Tónio era o melhor dos pedintes no melhor dos mundos, com certeza, Sr. Dr., a mamalhuda, a melhor das mamalhudas possíveis, com o melhor dos pastelinhos pela mão, corando ali, como na melhor das fotografias das magazines evangélicas os meninos de ser traquinas coram. Tudo era demasiado exemplar. Como troféus, Dr., como troféus em formol. A tarde erguia um céu lavado a acetona, Dr., os pardalitos chilreavam e as gentes truculentas iam e vinham quebrando-se umas de contra as outras como vagas e ele recalcitrante a apregoar: Senhora… Senhora… Por quem tem lá em cima, irmão…, verdade verdadinha… Deus, nosso Senhor, lhe arranje um cantinho... minha Senhora.
E a mamalhuda a girar e o rabo a espetar os olhos do Tónio, Sr. Dr., e o pastelinho, era vê-lo, vermelho como uma grande bochecha, os olhos pasmando na lombriga intumescida do Tónio divergindo da braguilha, os olhos do patife no avultado da mamalhuda, e, inocente, o pastelinho de rapaz, ali como um Deus menino com creme, em que se afundasse um dedo indelével. Sem qualquer dúvida, o cenário era majestoso, Dr., majestoso.
Quis Deus fosse eu escolhido, nisso não havia sombra de incerteza, qualquer escrúpulo, e dei então em vestir o casaco, era um casaco de camurça quase novo, e desci os degraus sopesando o brinquedo, sem qualquer pressa. E o Senhor ia comigo.
A mamalhuda e o pastelinho ali estavam, entre mim e ele. Sim, eu sorri, Dr., sorri porque Deus quisera que assim fosse, como um retrato de família. Olhei o cu de bigorna, o boca de retrete, olhei-o bem nos olhos baços, escarninhos. Um sorriso rasgou-me a cara como uma faca. Aí vai esmolinha carcaça, aí vai esmolinha, disse para que constasse. O goela aberta nem pestanejou quando premi o gatilho do 38. Duas outras balas perfuraram os olhos esbugalhando da mamalhuda e uma terceira a boca abrindo do caixãozinho. A seguir esvaziei o 38 ao acaso. Quando a guarda chegou, Dr., encontrou-me ali mesmo, sentado no degrau.
Ah, Sr. Dr., como é mansa a paz do justo.
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