quarta-feira

O homem da máquina


Cantór vivia no 344, r/c, Rue Montmartre, a uma porta da Upper Richmond Road ligando, a sul, à Norton de Matos e ao parque de Monsanto onde todas as manhãs, entre as seis e as quase oito, dava um longo passeio a pé antes de ir para o trabalho. Nesse dia, demorou-se mais do que era seu costume e bateram as oito fazia ele o último troço da Upper Richmond em direcção a casa. Durante todo o passeio Nikos Skantos não lhe saíra do espírito. Na noite anterior, fizera-se ouvir até perto das quatro e quando tudo finalmente sossegara tratara de despejar os cinzeiros pela varanda. Da primeira vez que isso acontecera, fora tirar satisfações de Skantos, mas este batera-lhe com a porta na cara. Entretanto, tratara de apelar ao senhorio, sem que nada tivesse acontecido. Ontem, dera-se novo despejo. Desta, iria à esquadra.
Dobrava Cantór a esquina para a Montmartre neste desassossego, quando, de repente, estaca surpreendido. Olha maquinalmente para o relógio que marca as oito e dez, e, perplexo, observa a pequena multidão que, inopinada, se agita febril, rigorosamente entre ele e a porta da sua casa. Quando compreende que toda aquela gente espera que o 344, Montmartre, dê sinal de vida, mais aturdido fica. Apanharam o Skantos, foi a única coisa que lhe ocorreu. Que Nikos Skantos, o habitante do 344, 1º andar, fosse má rês, não era nada que se não soubesse, e ele, que deliberara não limpar os dejectos antes de mais logo passar pela esquadra, podia até demonstrá-lo, necessário fosse. E Cantór deu consigo a sorrir, a ideia de deixar de ter Skantos como vizinho de cima agradava-lhe tanto que num ápice os cinzeiros se lhe varriam do espírito.
Quase cantarolando, Cantór acercou-se de um homem que sustinha uma máquina de filmar e com delicadeza interpelou-o. Todo o mal que pudesse ser infligido a Skantos era pouco, mas qual o mal, o que de facto sucedera, continuava sem saber.
- Então, não viu os jornais, homem de Deus? replicou uma diminuta senhora já de certa idade. Virara-se para trás e fincara nele dois olhos surpresos.
- Devia ter visto? retorquiu Cantór, mais curioso ainda.
- Mais de quatro mil milhões da World Lottery, limpos. Ganhos pelo gajo do 344, r/c., disse o homem que empunhava a máquina de filmar, sem que desviasse os olhos do que quer que fosse a que os tinha apontado. - Está tudo para o retrato, para as primeiras palavras do novo-rico, provavelmente um imbecil qualquer incapaz de dizer três palavras seguidas e agora enterrado em dinheiro. Olhe-lhes para as caras, já as observou? Está a ver aquelas mulheres ali, observe a ânsia com que retorcem as mãos e as levam ao peito. Quer que lhe diga o que as entretêm, estão na expectativa de uma história da Cinderela, sim da Cinderela. Há-os de vários géneros, homem, inclusive os que fazem contas, muitas contas, como aquele ali, observe o modo como baixa a cabeça e castiga o queixo, os olhos no chão, está latente a oportunidade do negócio, vê-se-lhe no pensamento, disse o homem da máquina, e sem que os olhos se lhe deslocassem um milímetro do que quer que fosse que os tinha seguros, prosseguiu. - Eu cá, sou pago para estar aqui. A que género pertence você?
- Eu moro no 344, r/c., disse Cantór de modo mecânico, a garganta atada ao estômago. Mas ainda mal concluía e já as máquinas faiscavam, a nuvem de pássaros desvairados adejava em seu redor, entre a Montmartre e a Upper Richmond, abrindo as goelas e bombardeando-o. Cantór, reduzido a um pensamento vago, estava incapaz de os ouvir. Livrar-se-ia de Nikos Skantos de qualquer modo, não seria a dor dele, mas, menos mal, seria o seu próprio prazer, um outro modo de pôr as coisas, porque não? Agora ele podia morar onde quisesse, podia comprar o edifício e despejar Skantos, pô-lo a esvaziar cinzeiros no inferno.
- Comprar o edifício, foi o que lhe saiu.
- Sim, comprar o edifício, primeiro comprar o edifício, depois penso, disse Cantór para si mesmo, empenhando-se em permanecer tranquilo. Depois, de repente, era muito tempo. Nesse momento, Skantos assoma à janela. O chinfrim, decerto, acordara-o. Mas teria ele uma percepção do que lhe estava a acontecer, perguntou-se Cantór, sentindo-se outra vez leve, e desejou que sim, que Skantos percebesse e se assustasse com o que iria ser doravante a sua vida. Despejado, acossado, levado a desejar a paz da morte. Um sorriso de satisfação rasgou-lhe o rosto petrificado e quis que ele também visse isso.
- Corta! ouviu-se então gritar. – Corta!
O efeito foi desastrado, a confusão instalara-se. A multidão, abalada no seu centro, hesitava e sem saber para onde se voltar seguia as máquinas que se moviam elas próprias desordenadamente. Cantór permanecia boquiaberto, olhando o gigantesco rissol que se formava à medida que a nuvem refluía e as gentes se reuniam à volta da janela de Skantos, quando sentiu uma mão pousar-se-lhe nas costas e alguém que se lhe dirigia.
- Afinal, tratava-se do 344, 1º. Foi um erro lamentável.
Era o homem da máquina, levava-a ao ombro, a lente a perder-se no céu.

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