segunda-feira

O descomunal e o minúsculo


Zigur tocava o piano no quarto ao lado. Tariq, na sala, ajoelhado junto a uma mulher pequenina, vergada, metida dentro de um sari azul-turquesa, os pés nus, olhava fixamente a estante das pautas muito em baixo e, muito sério, pegava na flauta transversal pela quarta vez, tinha cinco anos. Felizmente, estava na hora de preparar o peixe para o jantar, o que por uma hora lhe permitiria um silêncio apenas quebrado pelos estalidos do fogão e o borbulhar da água. Ele conhecia Tariq. Assim persistisse, em breve seria o melhor executante da sua idade e seria uma questão de tempo até entrar em concursos. Tariq se queria uma coisa dobrava a atenção em acções, todas elas eficazes. Preocupava-o Zigur e as suas explosões sobre as teclas, mas não demasiado. Em grande parte, a responsabilidade cabia à amenidade da mãe que queria meninos para sempre; meninos e depois músicos e poetas como o tio Tair, ainda um modo da meninez e já um modo da mendicidade. Alberto não apreciava realmente que os filhos tocassem um instrumento e aprendessem a ler uma escrita que ele mesmo desconhecia, como não apreciava essa veia que bombeava músicos e poetas há quatro gerações. Uma linhagem de comerciantes estava para uma linhagem de músicos e poetas como o macaquinho do realejo para o seu proprietário. É claro que o futuro os poderia querer ter como executantes - mas se assim fosse, assim acabaria por ser, uma vez que tinham os rudimentos, mais do que rudimentos o Zigur, e músicos na família próxima do lado materno não faltavam. Entretanto, era a sua opinião, deveriam polir as asas, como se supunha as crianças fizessem, uma vez que os pais não voavam. O que só se alcançava com a prática profissional precoce que prepararia o corpo para enfrentar a fúria do mundo sem contar com a cabeça. Ele não ignorava que a opinião do mundo era avessa à sua, mas nunca o que outros pensavam o desautorizara. Eles deviam arranjar um ofício e treinar o pensamento e o descomunal com a paciência e a regra de um corpo cansado, minúsculo.
- Marieta, para semana o Zigur vai trabalhar com o tipógrafo que também lhe aperfeiçoará a palavra; almoça por lá - depois das quatro poderá continuar com o piano. Terá que se levantar às seis para lá estar a horas, já fiz o caminho.
Marieta digeriu em silêncio, dentro de si sabia que Alberto tinha razão, era tempo de deixar Zigur, que perfazia nove anos em Novembro, esculpir ele próprio a sua incapacidade de voar. Tanto mais cedo, mais feliz ele seria e mais discreto no embrulhar das asas sob o asfalto do trabalho. Depois, dentro de meses nasceria Jesus, e ainda não havia dinheiro para acomodar um quarto no antigo estábulo.

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