São quase onze horas da manhã, está um dia húmido e chuvoso e a miúda está aninhada à porta sob a galeria exterior e balança-se suavemente para cá e para lá, exactamente como nos outros dias. Retira a unhazinha do ouvido, examina-a e leva-a à boca, a seguir limpa-a à manta que lhe serve de assento e lhe cobre as pernas pela metade, a mão está encardida como a cara; a manta, humedecida, ressua. Quase na ombreira do quiosque, o grande pedaço de cartão meio molhado é lacónico, mas ilustrativo: orfa, assim sem acentuação e, num canto, a silhueta invertida a negro de um copo de pé longo e a palavra Frágil. Reinspeccionada a unha, a rapariga recomeça a oscilar, ainda não tem doze anos em cima dos dedos. Pouco depois pára, olha para um lado e outro e abre uma caixinha com priscas. Num ápice vazou as pontas sobre um papel e enrolou-o queimando-lhe a ponta.
Entras no quiosque, a mão a desviar o cabelo molhado para trás e o senhor com o capachinho arruivado dá-te passagem. Agradeces. O seu fato negro é excessivo e está puído nas mangas, uma gabardine creme não propriamente impecável por cima, as calças estão demasiado curtas e exala um fortíssimo odor a lavanda. Há coisas que não podes deixar de notar. Lembra-te um religioso a quem o perfume reles e o capachinho arruivado emprestassem um ar trágico mais do que devasso. Não um Padre trágico, talvez um Pastor trágico.
- Sim, Seutor, o que vai ser? Apoias as mãos no balcão abrindo espaço e mencionas que queres duas carteiras de Smoking das pretas e tabaco.
- De qual, Seutor? pergunta, amável, a Dona Amélia. A senhora que está ao teu lado, um cinquentona loura platinada até ao buço, roda sobre os tornozelos e faz menção de se te distanciar com má cara. Não gosta de tabaco, presumes.
- Baren, Mac Baren, dois pacotes. Já agora um saquinho de gomas, sei lá, quatro de cada, não, faça cinco de cada. Quanto é tudo, Dona Amélia?
Conhece-te desde que para ali te mudaste, a Dona Amélia. É graças a ela que a miúda está por ali, da sua porta não a podem enxotar e sempre se sente melhor vendo-a por perto. A dona Amélia não o diz.
- Então um bom dia, Seutor. Obrigado, Seutor. Baixas a cabeça em sinal de reconhecimento, de onde te ficou este jeito cavalheiresco? Ainda apercebes alguém entrar e cumprimentar toda a gente, agora que pegavas no tabaco e nas mortalhas, tinhas resguardado as gomas e preparavas-te para sair. Respeitosamente, desces a cabeça e, já de saída, quase tropeças nos tornozelos da loura, do lado sofres o impacto pegajoso do capachinho. - Peço desculpa, tenha a bondade, viras-te para o capachinho com um gesto, Faça o favor...
A tipa nem se faz rogada, o queixo levantado, toda ela rescende a coisas e pós e cremes e aspersões. O capachinho, um tanto mais relutante mas não menos aromático, segue-a. Ainda olham para ti mais uma vez, depois ficam na conversa, junto a uma coluna. De vez em quando os seus olhares piedosos afagam a miúda de longe.
Estava habituada a tirar partido da culpa que sentíamos, a miúda. Era também uma maneira de controlar a situação de longe. Nunca a miúda te inspirara qualquer interrogação, se havia uma mãe para quem voltar, quem sabe um pai a cujo vício tinha de prestar contas, que talvez vivesse na vergonha e outros detalhes lúgubres. Era apenas ela, uma história eventualmente triste, mas solitária antes do mais, como determinadas uvas que sazonam prematuras e tomam o travo a passa ainda os cachos maduram.
- Vi que sabes enrolar. É para depois das gomas, e flectindo os joelhos pousas um pacote de tabaco e uma das carteiras de mortalhas na ponta menos molhada da manta onde uma mancha alastra, acastanhada; a seguir, o saco de gomas rola e detém-se já sobre o cartão, rente à haste negra do copo à Sandeman. A miúda continua a bambolear-se, mas os seus olhinhos de animal palmilham-te, adivinham em ti mais um anormal e vigiam, desejam fugir, mas atentam, nada há ali de precipitação. Chega-te um ruído vago de cochicho, depois o tom sobe enquanto tu próprio readquires altura e os olhas.
- Vai fazer-lhe pior a quê, exactamente? perguntas.
De esguelha, vês um sorriso sebento e fresco como laranjas iluminar as feições quase infantis da miúda, que por um momento para de oscilar. Da torre sineira, abatem-se as onze em versão electrónica. Deixas de os ouvir. Melhor, sente-los em surdina, ainda vês os grossos tornozelos da loura e o frasco de lavanda a perorar, um si bemol e um dó menor muito, muito ao fundo. Depois segues. Fuma miúda, que tenho eu a ver com isso?
Entras no quiosque, a mão a desviar o cabelo molhado para trás e o senhor com o capachinho arruivado dá-te passagem. Agradeces. O seu fato negro é excessivo e está puído nas mangas, uma gabardine creme não propriamente impecável por cima, as calças estão demasiado curtas e exala um fortíssimo odor a lavanda. Há coisas que não podes deixar de notar. Lembra-te um religioso a quem o perfume reles e o capachinho arruivado emprestassem um ar trágico mais do que devasso. Não um Padre trágico, talvez um Pastor trágico.
- Sim, Seutor, o que vai ser? Apoias as mãos no balcão abrindo espaço e mencionas que queres duas carteiras de Smoking das pretas e tabaco.
- De qual, Seutor? pergunta, amável, a Dona Amélia. A senhora que está ao teu lado, um cinquentona loura platinada até ao buço, roda sobre os tornozelos e faz menção de se te distanciar com má cara. Não gosta de tabaco, presumes.
- Baren, Mac Baren, dois pacotes. Já agora um saquinho de gomas, sei lá, quatro de cada, não, faça cinco de cada. Quanto é tudo, Dona Amélia?
Conhece-te desde que para ali te mudaste, a Dona Amélia. É graças a ela que a miúda está por ali, da sua porta não a podem enxotar e sempre se sente melhor vendo-a por perto. A dona Amélia não o diz.
- Então um bom dia, Seutor. Obrigado, Seutor. Baixas a cabeça em sinal de reconhecimento, de onde te ficou este jeito cavalheiresco? Ainda apercebes alguém entrar e cumprimentar toda a gente, agora que pegavas no tabaco e nas mortalhas, tinhas resguardado as gomas e preparavas-te para sair. Respeitosamente, desces a cabeça e, já de saída, quase tropeças nos tornozelos da loura, do lado sofres o impacto pegajoso do capachinho. - Peço desculpa, tenha a bondade, viras-te para o capachinho com um gesto, Faça o favor...
A tipa nem se faz rogada, o queixo levantado, toda ela rescende a coisas e pós e cremes e aspersões. O capachinho, um tanto mais relutante mas não menos aromático, segue-a. Ainda olham para ti mais uma vez, depois ficam na conversa, junto a uma coluna. De vez em quando os seus olhares piedosos afagam a miúda de longe.
Estava habituada a tirar partido da culpa que sentíamos, a miúda. Era também uma maneira de controlar a situação de longe. Nunca a miúda te inspirara qualquer interrogação, se havia uma mãe para quem voltar, quem sabe um pai a cujo vício tinha de prestar contas, que talvez vivesse na vergonha e outros detalhes lúgubres. Era apenas ela, uma história eventualmente triste, mas solitária antes do mais, como determinadas uvas que sazonam prematuras e tomam o travo a passa ainda os cachos maduram.
- Vi que sabes enrolar. É para depois das gomas, e flectindo os joelhos pousas um pacote de tabaco e uma das carteiras de mortalhas na ponta menos molhada da manta onde uma mancha alastra, acastanhada; a seguir, o saco de gomas rola e detém-se já sobre o cartão, rente à haste negra do copo à Sandeman. A miúda continua a bambolear-se, mas os seus olhinhos de animal palmilham-te, adivinham em ti mais um anormal e vigiam, desejam fugir, mas atentam, nada há ali de precipitação. Chega-te um ruído vago de cochicho, depois o tom sobe enquanto tu próprio readquires altura e os olhas.
- Vai fazer-lhe pior a quê, exactamente? perguntas.
De esguelha, vês um sorriso sebento e fresco como laranjas iluminar as feições quase infantis da miúda, que por um momento para de oscilar. Da torre sineira, abatem-se as onze em versão electrónica. Deixas de os ouvir. Melhor, sente-los em surdina, ainda vês os grossos tornozelos da loura e o frasco de lavanda a perorar, um si bemol e um dó menor muito, muito ao fundo. Depois segues. Fuma miúda, que tenho eu a ver com isso?