terça-feira

Cinco minutos



São quase onze horas da manhã, está um dia húmido e chuvoso e a miúda está aninhada à porta sob a galeria exterior e balança-se suavemente para cá e para lá, exactamente como nos outros dias. Retira a unhazinha do ouvido, examina-a e leva-a à boca, a seguir limpa-a à manta que lhe serve de assento e lhe cobre as pernas pela metade, a mão está encardida como a cara; a manta, humedecida, ressua. Quase na ombreira do quiosque, o grande pedaço de cartão meio molhado é lacónico, mas ilustrativo: orfa, assim sem acentuação e, num canto, a silhueta invertida a negro de um copo de pé longo e a palavra Frágil. Reinspeccionada a unha, a rapariga recomeça a oscilar, ainda não tem doze anos em cima dos dedos. Pouco depois pára, olha para um lado e outro e abre uma caixinha com priscas. Num ápice vazou as pontas sobre um papel e enrolou-o queimando-lhe a ponta.

Entras no quiosque, a mão a desviar o cabelo molhado para trás e o senhor com o capachinho arruivado dá-te passagem. Agradeces. O seu fato negro é excessivo e está puído nas mangas, uma gabardine creme não propriamente impecável por cima, as calças estão demasiado curtas e exala um fortíssimo odor a lavanda. Há coisas que não podes deixar de notar. Lembra-te um religioso a quem o perfume reles e o capachinho arruivado emprestassem um ar trágico mais do que devasso. Não um Padre trágico, talvez um Pastor trágico.
- Sim, Seutor, o que vai ser? Apoias as mãos no balcão abrindo espaço e mencionas que queres duas carteiras de Smoking das pretas e tabaco.
- De qual, Seutor? pergunta, amável, a Dona Amélia. A senhora que está ao teu lado, um cinquentona loura platinada até ao buço, roda sobre os tornozelos e faz menção de se te distanciar com má cara. Não gosta de tabaco, presumes.
- Baren, Mac Baren, dois pacotes. Já agora um saquinho de gomas, sei lá, quatro de cada, não, faça cinco de cada. Quanto é tudo, Dona Amélia?
Conhece-te desde que para ali te mudaste, a Dona Amélia. É graças a ela que a miúda está por ali, da sua porta não a podem enxotar e sempre se sente melhor vendo-a por perto. A dona Amélia não o diz.
- Então um bom dia, Seutor. Obrigado, Seutor. Baixas a cabeça em sinal de reconhecimento, de onde te ficou este jeito cavalheiresco? Ainda apercebes alguém entrar e cumprimentar toda a gente, agora que pegavas no tabaco e nas mortalhas, tinhas resguardado as gomas e preparavas-te para sair. Respeitosamente, desces a cabeça e, já de saída, quase tropeças nos tornozelos da loura, do lado sofres o impacto pegajoso do capachinho. - Peço desculpa, tenha a bondade, viras-te para o capachinho com um gesto, Faça o favor...
A tipa nem se faz rogada, o queixo levantado, toda ela rescende a coisas e pós e cremes e aspersões. O capachinho, um tanto mais relutante mas não menos aromático, segue-a. Ainda olham para ti mais uma vez, depois ficam na conversa, junto a uma coluna. De vez em quando os seus olhares piedosos afagam a miúda de longe.

Estava habituada a tirar partido da culpa que sentíamos, a miúda. Era também uma maneira de controlar a situação de longe. Nunca a miúda te inspirara qualquer interrogação, se havia uma mãe para quem voltar, quem sabe um pai a cujo vício tinha de prestar contas, que talvez vivesse na vergonha e outros detalhes lúgubres. Era apenas ela, uma história eventualmente triste, mas solitária antes do mais, como determinadas uvas que sazonam prematuras e tomam o travo a passa ainda os cachos maduram.
- Vi que sabes enrolar. É para depois das gomas, e flectindo os joelhos pousas um pacote de tabaco e uma das carteiras de mortalhas na ponta menos molhada da manta onde uma mancha alastra, acastanhada; a seguir, o saco de gomas rola e detém-se já sobre o cartão, rente à haste negra do copo à Sandeman. A miúda continua a bambolear-se, mas os seus olhinhos de animal palmilham-te, adivinham em ti mais um anormal e vigiam, desejam fugir, mas atentam, nada há ali de precipitação. Chega-te um ruído vago de cochicho, depois o tom sobe enquanto tu próprio readquires altura e os olhas.
- Vai fazer-lhe pior a quê, exactamente? perguntas.
De esguelha, vês um sorriso sebento e fresco como laranjas iluminar as feições quase infantis da miúda, que por um momento para de oscilar. Da torre sineira, abatem-se as onze em versão electrónica. Deixas de os ouvir. Melhor, sente-los em surdina, ainda vês os grossos tornozelos da loura e o frasco de lavanda a perorar, um si bemol e um dó menor muito, muito ao fundo. Depois segues. Fuma miúda, que tenho eu a ver com isso?

quinta-feira

Exames médicos


O Sr. T. não fazia exames médicos - uma questão de coerência com grandes princípios. Não que acreditasse que as doenças saltassem dos exames médicos para o seu corpo. Já o contrário lhe aparecia plausível, aqueles aparelhamentos, na aparente neutralidade de instrumentos, viviam da sua saúde, ganhavam uma razão de ser da sua saúde e, ao fim e ao cabo, era ainda à sua saúde que eles iam buscar os máximos e os mínimos que definem doença, mesmo quando fosse a sua doença.
Na realidade, ao Sr. T. apetecia apenas expirar um dia, simplesmente, sem máquinas de sobrevida e sobrevinda, sem doenças classificadas, um acontecimento de bicho solitário. Ninguém por perto que merecesse envergar lágrimas, só a frescura da erva e o sem tempo do fim.
Mas ainda faltava muito tempo, era a sua verdade. E um exame médico também não podia dizer isso.
Um dia, disseram-lhe que tinha uma doença terminal. Demorou muito a morrer.

terça-feira

Jogos


Desandando os filhos por ele adentro entre lençóis de lava-me e leva-me à escola que se faz tarde, o Sr. B., que tinha proveito de ocioso, aquiescia, os seus pés encaminhando-se para a casa de banho com café nas mãos e as volumosas meias luas em relevo sob os olhos pendendo-o para baixo.
- Chegar a tempo, primeira lição, é um jogo de azar, disse o Sr. B. enquanto afogava o café.
De seguida, entre um sinal vermelho e uma rotunda, o Sr. B. fala de competição, de sorte, do simulacro e da vertigem entre o mundo e a impessoalidade da Lei. Sempre que o semáforo fica verde, o Sr. B. faz uma pausa e um arranque. Chegados ao lugar de poiso e frente ao destino naturalmente mais sossegados, desandam os cinco primeiros para a escola em passo de marcha. O sexto permanece, afundado no mapa dos estofos.
- Algum problema, Sextus Empiricus? pergunta o Sr. B., vincando nos três pontinhos a natural ausência que se deveria seguir.
- Nenhum. Mas competimos para chegar a tempo, mesmo se foi uma sorte, não competimos? E eu tive vertigens, Francisco Sextus Empiricus sorria.
- Claro, Sextus, disse o Sr. B., claro. Por vezes até o vosso pai é competente, mas isto permanecerá um segredo, algo entre nós.
- Vais voltar para a cama?
- Não se pode estar sempre a competir, concordas?

segunda-feira

O descomunal e o minúsculo


Zigur tocava o piano no quarto ao lado. Tariq, na sala, ajoelhado junto a uma mulher pequenina, vergada, metida dentro de um sari azul-turquesa, os pés nus, olhava fixamente a estante das pautas muito em baixo e, muito sério, pegava na flauta transversal pela quarta vez, tinha cinco anos. Felizmente, estava na hora de preparar o peixe para o jantar, o que por uma hora lhe permitiria um silêncio apenas quebrado pelos estalidos do fogão e o borbulhar da água. Ele conhecia Tariq. Assim persistisse, em breve seria o melhor executante da sua idade e seria uma questão de tempo até entrar em concursos. Tariq se queria uma coisa dobrava a atenção em acções, todas elas eficazes. Preocupava-o Zigur e as suas explosões sobre as teclas, mas não demasiado. Em grande parte, a responsabilidade cabia à amenidade da mãe que queria meninos para sempre; meninos e depois músicos e poetas como o tio Tair, ainda um modo da meninez e já um modo da mendicidade. Alberto não apreciava realmente que os filhos tocassem um instrumento e aprendessem a ler uma escrita que ele mesmo desconhecia, como não apreciava essa veia que bombeava músicos e poetas há quatro gerações. Uma linhagem de comerciantes estava para uma linhagem de músicos e poetas como o macaquinho do realejo para o seu proprietário. É claro que o futuro os poderia querer ter como executantes - mas se assim fosse, assim acabaria por ser, uma vez que tinham os rudimentos, mais do que rudimentos o Zigur, e músicos na família próxima do lado materno não faltavam. Entretanto, era a sua opinião, deveriam polir as asas, como se supunha as crianças fizessem, uma vez que os pais não voavam. O que só se alcançava com a prática profissional precoce que prepararia o corpo para enfrentar a fúria do mundo sem contar com a cabeça. Ele não ignorava que a opinião do mundo era avessa à sua, mas nunca o que outros pensavam o desautorizara. Eles deviam arranjar um ofício e treinar o pensamento e o descomunal com a paciência e a regra de um corpo cansado, minúsculo.
- Marieta, para semana o Zigur vai trabalhar com o tipógrafo que também lhe aperfeiçoará a palavra; almoça por lá - depois das quatro poderá continuar com o piano. Terá que se levantar às seis para lá estar a horas, já fiz o caminho.
Marieta digeriu em silêncio, dentro de si sabia que Alberto tinha razão, era tempo de deixar Zigur, que perfazia nove anos em Novembro, esculpir ele próprio a sua incapacidade de voar. Tanto mais cedo, mais feliz ele seria e mais discreto no embrulhar das asas sob o asfalto do trabalho. Depois, dentro de meses nasceria Jesus, e ainda não havia dinheiro para acomodar um quarto no antigo estábulo.

terça-feira


Voltava para casa depois de um dia particularmente penoso. Era sexta-feira, segunda era feriado, mas a perspectiva do fim-de-semana prolongado não o alegrava por aí além. O rádio tocava o primeiro movimento do Marchenbilder de Schumann e o carro deslizava embalado na música. Sempre fora um funcionário correcto e irrepreensível, ninguém tinha nada a apontar-lhe. Há trinta anos que ali trabalhava e há dez que era gerente da loja. O carro iluminou uma portada cor de salmão. Entrou, pôs o casaco no cabide e bateu a porta.
- Fui despedido, Mó. Despediram-me depois de trinta anos.
Mó segurou-lhe as mãos e fitou-o, entorpecida. Depois desviou os olhos e desapareceu na cozinha para chorar sozinha. Ao fim de vinte anos de casamento tinham aprendido a não manifestar sentimentos um perante o outro. Ele, contra todas as regras, desfechou um pontapé na porta da cozinha. - Foi um erro vir para casa, Mó. 
Mó que cortava cebola, olhou-o através das lágrimas. Vens jantar, ainda quis perguntar, mas ele já saíra e o bolbo agarrava-a pelas lágrimas.
Ligou o carro e o n.3 da Consolação de Liszt irrompeu no silêncio. Depois o carro arrancou a grande velocidade.

sábado

O Chapéu do Sr. T.

O Sr. T. tinha outros nomes debaixo do chapéu, talvez tantos como as manchas acastanhadas que agora teimavam em pintar-lhe o alto da testa, talvez mais - por isso se apresentava sempre como o Sr. T., como se apenas dissesse: ele.
De uma vez, inclusive, o Sr. T. tratara de aprender com um ventríloquo a colocar a voz no chapéu o que, chegou a acreditar, facilitaria as coisas. Quem no mundo podia dar importância a um chapéu que se referia ao seu possuidor como se tratando do Sr. T.? Infelizmente, como o Sr. T. rapidamente iria constatar, demasiada gente. Um chapéu falante, concluiria o Sr. T., só nos protege na medida em que fizer de nós um centro de redobradas atenções.
Por um momento desiludido consigo mesmo, logo o Sr. T. recobraria o ânimo recolocando a voz onde era devida. O truque, concluiria após alguns dias, era os lábios referirem o centro vazio do chapéu e não o inverso. Deste modo, assim mantivesse o chapéu sobre a cabeça, nunca ninguém se aperceberia de nada, nem mesmo ele próprio, o que o deixava muito feliz. Tão feliz quanto um chapéu podia ser.

quarta-feira

O Sr.T. apalpa as mamas à Lei


... é assim porque assim o quis! – diz, saltitante, a Lei. O Sr. T. olha-a interessado, não porque fosse bela a figura, mas porque a via saltitar.

O homem da máquina


Cantór vivia no 344, r/c, Rue Montmartre, a uma porta da Upper Richmond Road ligando, a sul, à Norton de Matos e ao parque de Monsanto onde todas as manhãs, entre as seis e as quase oito, dava um longo passeio a pé antes de ir para o trabalho. Nesse dia, demorou-se mais do que era seu costume e bateram as oito fazia ele o último troço da Upper Richmond em direcção a casa. Durante todo o passeio Nikos Skantos não lhe saíra do espírito. Na noite anterior, fizera-se ouvir até perto das quatro e quando tudo finalmente sossegara tratara de despejar os cinzeiros pela varanda. Da primeira vez que isso acontecera, fora tirar satisfações de Skantos, mas este batera-lhe com a porta na cara. Entretanto, tratara de apelar ao senhorio, sem que nada tivesse acontecido. Ontem, dera-se novo despejo. Desta, iria à esquadra.
Dobrava Cantór a esquina para a Montmartre neste desassossego, quando, de repente, estaca surpreendido. Olha maquinalmente para o relógio que marca as oito e dez, e, perplexo, observa a pequena multidão que, inopinada, se agita febril, rigorosamente entre ele e a porta da sua casa. Quando compreende que toda aquela gente espera que o 344, Montmartre, dê sinal de vida, mais aturdido fica. Apanharam o Skantos, foi a única coisa que lhe ocorreu. Que Nikos Skantos, o habitante do 344, 1º andar, fosse má rês, não era nada que se não soubesse, e ele, que deliberara não limpar os dejectos antes de mais logo passar pela esquadra, podia até demonstrá-lo, necessário fosse. E Cantór deu consigo a sorrir, a ideia de deixar de ter Skantos como vizinho de cima agradava-lhe tanto que num ápice os cinzeiros se lhe varriam do espírito.
Quase cantarolando, Cantór acercou-se de um homem que sustinha uma máquina de filmar e com delicadeza interpelou-o. Todo o mal que pudesse ser infligido a Skantos era pouco, mas qual o mal, o que de facto sucedera, continuava sem saber.
- Então, não viu os jornais, homem de Deus? replicou uma diminuta senhora já de certa idade. Virara-se para trás e fincara nele dois olhos surpresos.
- Devia ter visto? retorquiu Cantór, mais curioso ainda.
- Mais de quatro mil milhões da World Lottery, limpos. Ganhos pelo gajo do 344, r/c., disse o homem que empunhava a máquina de filmar, sem que desviasse os olhos do que quer que fosse a que os tinha apontado. - Está tudo para o retrato, para as primeiras palavras do novo-rico, provavelmente um imbecil qualquer incapaz de dizer três palavras seguidas e agora enterrado em dinheiro. Olhe-lhes para as caras, já as observou? Está a ver aquelas mulheres ali, observe a ânsia com que retorcem as mãos e as levam ao peito. Quer que lhe diga o que as entretêm, estão na expectativa de uma história da Cinderela, sim da Cinderela. Há-os de vários géneros, homem, inclusive os que fazem contas, muitas contas, como aquele ali, observe o modo como baixa a cabeça e castiga o queixo, os olhos no chão, está latente a oportunidade do negócio, vê-se-lhe no pensamento, disse o homem da máquina, e sem que os olhos se lhe deslocassem um milímetro do que quer que fosse que os tinha seguros, prosseguiu. - Eu cá, sou pago para estar aqui. A que género pertence você?
- Eu moro no 344, r/c., disse Cantór de modo mecânico, a garganta atada ao estômago. Mas ainda mal concluía e já as máquinas faiscavam, a nuvem de pássaros desvairados adejava em seu redor, entre a Montmartre e a Upper Richmond, abrindo as goelas e bombardeando-o. Cantór, reduzido a um pensamento vago, estava incapaz de os ouvir. Livrar-se-ia de Nikos Skantos de qualquer modo, não seria a dor dele, mas, menos mal, seria o seu próprio prazer, um outro modo de pôr as coisas, porque não? Agora ele podia morar onde quisesse, podia comprar o edifício e despejar Skantos, pô-lo a esvaziar cinzeiros no inferno.
- Comprar o edifício, foi o que lhe saiu.
- Sim, comprar o edifício, primeiro comprar o edifício, depois penso, disse Cantór para si mesmo, empenhando-se em permanecer tranquilo. Depois, de repente, era muito tempo. Nesse momento, Skantos assoma à janela. O chinfrim, decerto, acordara-o. Mas teria ele uma percepção do que lhe estava a acontecer, perguntou-se Cantór, sentindo-se outra vez leve, e desejou que sim, que Skantos percebesse e se assustasse com o que iria ser doravante a sua vida. Despejado, acossado, levado a desejar a paz da morte. Um sorriso de satisfação rasgou-lhe o rosto petrificado e quis que ele também visse isso.
- Corta! ouviu-se então gritar. – Corta!
O efeito foi desastrado, a confusão instalara-se. A multidão, abalada no seu centro, hesitava e sem saber para onde se voltar seguia as máquinas que se moviam elas próprias desordenadamente. Cantór permanecia boquiaberto, olhando o gigantesco rissol que se formava à medida que a nuvem refluía e as gentes se reuniam à volta da janela de Skantos, quando sentiu uma mão pousar-se-lhe nas costas e alguém que se lhe dirigia.
- Afinal, tratava-se do 344, 1º. Foi um erro lamentável.
Era o homem da máquina, levava-a ao ombro, a lente a perder-se no céu.

sábado

O doentinho, a mamalhuda e o pastelinho em breve retrato e o senhor do 38


E foi assim que tudo aconteceu, Sr. Dr., eu morava ali, eu moro ali vai para dez anos, e ele escolhera justo a minha porta, o alpendre um degrau acima da rua, lado a lado com a porta da sapataria. E berrava desalmadamente, Dr. e era: Senhora, senhora, dê uma esmolinha. E depois: uma esmolinha ao doentinho, por quem tem lá em cima. E ainda: ó minha Senhora, ó irmão, uma esmolinha. E assim por diante, monocórdico, bajulador, exalando um ar cuidadosamente pestilento, uns olhinhos minúsculos e rápidos, os vidros baços, escarninhos.
Senhora, Senhora… ó minha Senhora.
Uma esmola de quando em vez é necessário para se estar de bom nervo, assim de soslaio, como um certo treino de bem-fazer, e pouco, que os pobrezinhos, valha-nos Deus, são eles e as mães, depois, nunca há-de faltar nicho para tanta boa vontade, Sr. Dr., o senhor sabe, uma esmolinha traz com o alívio a redenção, uma agradável sensação de que Deus nos piscou o olho, não é assim? Dá e receberás, lá diz o Livro. Não é? Os transeuntes são felizes no trocar, salvam-lhes o dia, os pedintes, e assim lhes agradecem, e está bem, pensam as gentes, largando a moeda e alçando os olhos ao céu. Está feito! dizem, e o que está feito é o bem, pensam, e o bem é imenso, depois é vê-los radiantes, os olhos brilhando, seguirem as suas construções de céu, sacolejando já os guarda-chuvas, ora cantarolando num bem-aventurado passo: Ai, que bom eu sou! Ai, que bom eu sou. Ai, ai, ai, que bom eu sou!
Deus, nosso Senhor, lhe arranje um cantinho... minha Senhora. Ai, que boa Senhora! Dê esmolinha Patrão.
A camisa de alças caía-lhe dos ombros exibindo o peito branco, sem sol, muito branco e gordo, uns poucos pêlos empinando uma cidadela rala e rebentando no roçar da camisa quase alva. O puta engordara desde Dezembro, Sr. Dr., aquele bocado grasnante, sem membros, tinha a ligeireza das gralhas no voo e o porte de um elefante velho, a voz de uma hiena. Mesmo assim, exibia orgulhoso a sua nudez ao mexerico e esfregava-se feliz, o pulha, a entrar-me nos nervos.
Vem daí, chamava o Mil-dedos, remexendo os cotos superiores. Mortos em guerra, ouvira dizer. Mas nada demovia o Tónio Marselhesa. E o Mil-dedos vai de voar por si. Sabe que o Tónio Patife trabalha o dia, todas as horas, peça por peça. Amolecera no trabalho, diziam uns. Um mestre, o Tónio, diziam outros. E o Tónio fazia a novena, emocionava-se como se Deus lhe soprasse a cantilena directo nas fuças e sofresse verdadeiramente de suas simuladas misérias. Ai, Dr., quanto suspirei eu por vergastar aquele braço estendido, aqueles cotos dilatados, aquele buraco húmido, as ladainhas a entrar-me nos nervos.
Senhora, senhora dê esmolinha... Ó patrão, por quem tem lá em cima... Uma esmolinha ao doentinho... Senhora, senhora... É necessário ser-se bom de coração. Ou surdo. Todos os dias, Sr. Dr., de manhã à noite o carcaça velha a grunhir, a arrepiar os pregões, ali prantado, massajando a multidão com estribilhos fulminantes, os frouxos tocos esparramados no passeio a terminar em joelhos venenosos, transidos como árvores podadas, embriagado do seu entoado ladrar. Todo o santo dia, ali, Sr. Dr., todo santo dia no alpendre um degrau acima da rua, entre a minha porta e a porta da sapataria, a entrar-me pelos nervos, a perfurar, a atravessar. Por Deus e por quem tem lá em cima, verdade verdadinha… Deus, nosso Senhor, lhe arranje um cantinho... irmão.
Se ao menos o pulha gozasse de hora de descanso, Sr. Dr., ou se o homem se apartasse duas vintenas de metros e aparcasse lá para o fundo, na embocadura da praça. Mas não. Aquele pedaço de sebo mal corado pelo sol tinha que estar ali, ali mesmo, entre a minha porta e a porra da sapataria, e, o pulha, que nem abotoara a braguilha, e um pastelinho de rapaz a passar e esbugalhado a repuxar insistente o braço gordo da mamã, absorta nas luzes da praça, como a uma alça de autoclismo, e arregalando o dedo ruborizado, a apontar, a apontar. E a mamã a dar com a esmola quase o braço, a nívea mama a baloiçar no nariz do pulha, Sr. Dr., e o pulha a perdigotar como a boca de um cão esganado, ali aparafusado ao mamário e a perdigotar.
Foi então, Dr., foi então que tudo se me iluminou. Assim, detrás para a frente. O Tónio era o melhor dos pedintes no melhor dos mundos, com certeza, Sr. Dr., a mamalhuda, a melhor das mamalhudas possíveis, com o melhor dos pastelinhos pela mão, corando ali, como na melhor das fotografias das magazines evangélicas os meninos de ser traquinas coram. Tudo era demasiado exemplar. Como troféus, Dr., como troféus em formol. A tarde erguia um céu lavado a acetona, Dr., os pardalitos chilreavam e as gentes truculentas iam e vinham quebrando-se umas de contra as outras como vagas e ele recalcitrante a apregoar: Senhora… Senhora… Por quem tem lá em cima, irmão…, verdade verdadinha… Deus, nosso Senhor, lhe arranje um cantinho... minha Senhora.
E a mamalhuda a girar e o rabo a espetar os olhos do Tónio, Sr. Dr., e o pastelinho, era vê-lo, vermelho como uma grande bochecha, os olhos pasmando na lombriga intumescida do Tónio divergindo da braguilha, os olhos do patife no avultado da mamalhuda, e, inocente, o pastelinho de rapaz, ali como um Deus menino com creme, em que se afundasse um dedo indelével. Sem qualquer dúvida, o cenário era majestoso, Dr., majestoso.
Quis Deus fosse eu escolhido, nisso não havia sombra de incerteza, qualquer escrúpulo, e dei então em vestir o casaco, era um casaco de camurça quase novo, e desci os degraus sopesando o brinquedo, sem qualquer pressa. E o Senhor ia comigo.
A mamalhuda e o pastelinho ali estavam, entre mim e ele. Sim, eu sorri, Dr., sorri porque Deus quisera que assim fosse, como um retrato de família. Olhei o cu de bigorna, o boca de retrete, olhei-o bem nos olhos baços, escarninhos. Um sorriso rasgou-me a cara como uma faca. Aí vai esmolinha carcaça, aí vai esmolinha, disse para que constasse. O goela aberta nem pestanejou quando premi o gatilho do 38. Duas outras balas perfuraram os olhos esbugalhando da mamalhuda e uma terceira a boca abrindo do caixãozinho. A seguir esvaziei o 38 ao acaso. Quando a guarda chegou, Dr., encontrou-me ali mesmo, sentado no degrau.
Ah, Sr. Dr., como é mansa a paz do justo.

quinta-feira

A menina


Um dia, passaria pouco das dez, tratava o lobo grande e mau de mastigar um folhado de galinha e beber o seu primeiro café com cheirinho, quando inesperada a silhueta de uma menina se desenhou bem na sua frente. A menina, vestindo um casaquinho vermelho de capuz, fitou-o, arrancou da cestinha que levava um cartaz e, sem quaisquer rodeios, tratou de lho exibir, bem à frente das lentes. - Este é o lobo grande e mau, disse. - Tu és o lobo grande e mau? O lobo não queria acreditar, mas por mais que se beliscasse e abrisse e fechasse os olhos negros aumentados pelas lentes, só ganhara uma dor no braço. A menina do capuchinho, essa, firme como um pequeno penedo permanecia especada à sua frente, inquiridora. A inocência perguntava pelo talho, admirou-se o lobo e já salivando apressou-se a responder que não, que não era ele, mas que sabia onde ele morava, que a podia lá levar, que podia ser agorinha mesmo, assim ela estivesse a tal disposta. A menina do capuchinho fitava-o. Que podia ser agora mesmo, repetia o lobo. Mas não havia qualquer expressão no seu pequeno rosto de menina. Que não, continuava o lobo, então não se estava a ver que ele até era pequeno? E o lobo grande e mau não usa óculos, usa? perguntava o lobo exibindo a armação. Mas que sabia onde morava, que a podia levar lá, repetia. O rosto da menina de casaquinho vermelho de capuz permanecia sem expressão, os olhos opacos, fixos nos do lobo.
Quando o lobo fez menção de se levantar tudo se precipitou. A menina esperava isso porque estava ali para isso, abriu o casaquinho vermelho de capuz e num impulso que a impeliu para trás como se estivesse prestes a fugir, contendo-se num último gesto, detonou o cinto de explosivos. O estrondo foi de tal ordem que abalou a casa dos sete cabritinhos.

quarta-feira

Esperemos que aconteça alguma coisa


- Aconteceu alguma coisa?
- Acontecem sempre coisas em demasia, Sr..
- Pergunto se aconteceu ‘alguma coisa’.
- … não, basicamente é a continuidade dos processos de erosão. Não aconteceu nada de colossal. Eventualmente, uma guerra ou duas. Nada de importância. Usam-nas como acções de manutenção e catarse comercial. Coisas que afectam os territórios históricos.
- Nada mais?
- Bombas nas fronteiras, mais alguns milhares de desempregados, pequenas revoltas, muros à volta de estados, coisas assim. Tudo em território...
- Histórico, com certeza. E o meu tamarindo?
- Brotou, Sr., e já abriu três raminhos, 12 pares de folíolos oblongos por ramo. Um tamarindo neste clima! O Senhor me perdoe se o Sr. não tem dedo verde!
- Não deixa de ser cómico. Deves lembrar-te como perseguia o velho jardineiro.
- Empunhava o Sr. ainda o bibe!
- Mas a mamã quis que não fosse assim.
- Tinha a senhora sua mãe uma grande visão!
- Não, via já muito mal então, coitada. Sabes que sim. Alguém foi lá pôr flores, recentemente?
- Eu próprio.
- Bem.
- Mais alguma coisa, Sr.?
- Não, por agora, não. Esperemos que aconteça alguma coisa.

terça-feira

O avô


Vira o neto pôr sorrateiramente meia garrafa de branco debaixo da mesa. A mãe estava animada e o neto escondera o vinho debaixo da mesa, no gesto absurdo de quem não sabe mais.
– Acabou-se o vinho? A mãe estava num alegre negro que ele reconhecia e que a qualquer momento podia resvalar. O cunhado chega-lhe uma cerveja, enquanto abre outra para si.
– Não queres esconder esta, pois não papá?, diz ela. O avô sorri um sorriso difícil, que não quer dizer sim nem não.
- Maria Cristina! pede a avó.
A mãe está doente de infelicidade, médicos e mãos de comprimidos por dia. De cerveja, depois das seis. De amigos.
- Oh a garrafa, afinal sempre aqui esteve, diz ela em falsete enquanto levanta as faldas da toalha. Depois atira os braços à volta do avô, dá-lhe um beijo como uma filha obediente e festeja-lhe levemente o queixo. Todos chalaceiam, alguns batem palmas, o riso é contagiante. Só o avô vê que o neto não sorri.