segunda-feira

Acontecimentos em Secretaria




O Sr. Nascimento era um funcionário de Secretaria, ausente de qualquer ligação à oposição de Esperança. Viera para Secretaria anos setenta, oriundo das colónias - um chapéu negro de abas largas e uns óculos escuros, monovolume, uma luzinha vermelha a ir e a vir, atrás de um guichet há trinta anos.
Zunzum, zunzum, a luz a luzir e a voltar, o chapéu negro de abas largas a cobrir o seu mutismo, a agilidade dos braços compridos e magros. Tanto quanto se sabia, o Sr. Nascimento viera das colónias de Secretaria e ingressara na função pública, ponto final.
De um dia para o outro, o Sr. Nascimento soube que tinha mudado a gerência de Secretaria quando ali foi chamado.
- Caro Sr. Nascimento, como sabe está em curso um processo de creditação global e todos os serviços estão a ser reavaliados.
Sim, ouvira dizer alguma coisa.
- Acontece, Sr. Nascimento que o senhor falha nos itens pontualidade e apresentação - e a luzinha a ir e a vir.
- Há também indícios suficientes para acreditar que roubou um roupão branco, nas Pousadas de Secretaria. Finalmente, terá prestado falsas declarações contaminando a impecabilidade do nosso registo. Sr. Nascimento, lamentamos informá-lo, mas está despedido.
O Nascimento não conseguia cerrar a boca, o queixo tombado à maça de Adão. Como é que sabiam do roupão? Ao lado daquela mísera culpa tudo o mais parecia irrisório e verdadeiro, mesmo se, por exemplo, não se recordava de prestar quaisquer falsas declarações e, para todos os colaterais, ali trabalhava há já trinta e cinco anos e tinha a folha limpa.
Só no dia seguinte, como o queixo regressasse a preensão maxilar, o Sr. Nascimento se apercebeu que nunca tinha roubado nenhum roupão branco, o que surripiara era claramente cor rosa salmão.

domingo

O Leiria



- Sempre à mesma hora, entendes, não há coincidência.
Alberto ouvia-o. Apreciava aquela hora e meia em que, de quando em vez, lhe era óbvio cerrar a boca e desimpedir os ouvidos. O Leiria continuava: - Eh pá, enche os olhos a mulher. Mas não julgues que seja fácil, lá porque há cães no meio.
- Estás a ver o cão dela, é um daqueles tacos felpudos e implicantes. A cadela sabe mostrar distância, eduquei-a, é mais humana. - Claro que ela reconhece um cão, mas prefere humanos, está ensinada. Mas o diabo do cãozinho dispara a ganir, perfeitamente possesso, aos pinotes.
- O bicho pressente o meu cheiro. Os homens têm o instinto atrofiado, pá, os cães não. Até que a cadela abre a boca - vê a boca da Setter, pá! - ia fazer ió-ió do cãozinho. Foi ver o taco enrolar às pernas da dona, um pompom entre os sapatos, as meias brilhantes a perderem-se acima do joelho.
- Um dia percebi que ela tinha carro. Vi-a a fechar a porta, depois de estacionar. Tinha no vidro de trás um espantalho em pano, sim deste tamanho, e esticou as mãos, ali a baloiçar. Que género de pessoa tem um carro com um espantalho de pano a baloiçar no retrovisor? Era mau sinal.
- A certa altura, pensei que eram duas. Um dia, à mesma hora, lá vi o cãozinho irritante, mas ela parecia-me mais velha. Tinha uma irmã mais velha, devia ser isso. Outro mau sinal. Mas enchia o olho, a mulher.
Claro que Alberto entendia, há quantos anos conhecia ele o Leiria? Desde o ofício às histórias com que mobilava um mundo perfeitamente praticável, mas de todo descoincidente com o do homem que passa na rua, tudo ele conhecia do Leiria.
- Sabes o que vou fazer, continuava o Leiria. Ando concentrado nisso. Tenho pensado muito. - Ela já reparou em mim, pá, e já percebeu que eu reparei nela. Mas o pompom quer-me à distância. Um dia surpreendo-a. Viro-me a ela no momento em que a besta atacar e digo-lhe: 'o seu cão é sagitário, não é?' - Entendes, 'o seu cão é sagitário, não é?' - Ora, se eu estiver certo e ela for... se ela não for sagitário não dá em nada. Mas, vê, e se ela for? Vai dizer qualquer coisa como isto: - O cãozinho não sei, mas eu sou sagitário, e naturalmente vai perceber que aqui há bruxo. Depois, vê-me a Setter, ela vai pensar que eu sou um mago rico, um bom carro, palacete, coisas dessas.


Alberto simpatizava com o Leiria. Com o seu modo, a sua condição de lado de fora incomparável, a viver uma salinha e quarto em penumbra contínua, acima de uma vintena de degraus rangentes e estreitos, em cotovelo. Chegara a dar aulas numa faculdade, o Leiria. Escrevera para um jornal de grande tiragem nos idos de setenta, dera aulas de guitarra clássica. Um dia tudo mudava. Deixou o trabalho e nunca mais trabalhou. Passara a ter o ofício, opção que fizera dele a personagem que se lhe reconhece no meio.
Tinha todo tempo livre e uma rigorosa rotina de solitário. Horas para atender, horas para manutenção, horas em que compunha, outras em que estudava e, ao fim de semana, se houvesse carro e dinheiro para dividir a gasolina e fosse meteorologicamente possível, galgava serras e penedos munido de duplo cajado, para fotografar pedras.
Álbuns e mais álbuns empilhavam-se por todo o lado, aos cantos, junto aos sofás e a encher a salinha, fotografias a pejarem as paredes, a mesa – pedregulhos, fragas, penedos, penhascos - milhares de rochas a penar para a objectiva, cada uma a exibir a sua formalidade, cada uma a sinalizar um percurso. Mas nada disso era o ofício. E quando as coisas corriam pior com o ofício, o Leiria vivia com uma mão à frente e a outra atrás. Tinha de cortar nos passeios de fim-de-semana e no café, no filme, na luz e na água. E o ofício ia de mal a pior. Já não era o único na cidade, estaria desactualizado, talvez, as redes também envelhecem. Fora o primeiro, mas o que é que isso interessava? Tinha uma clientela selecta e valia-lhe o jantar em casa da mãe, ele e a Setter.


- E o Xavier, houve mais alguma coisa, depois da cola na fechadura?
Uma noite, três anos atrás, Alberto conhecera Xavier B.. Tocara à porta e, como sempre afastara-se os vinte centímetros da praxe que o tornavam reconhecível pela frincha entreaberta do estore do primeiro andar, ouvira os passos na escada e depois os trincos e a porta abrir-se. Nesse minuto, surgido do nada, emergiu a figura alta e magra de Xavier que também entrava. Alberto, instruído pelo Leiria, subia de imediato para a salinha enquanto esse Xavier B. permanecera cerca de dez minutos à conversa no vestíbulo. Durante todo esse tempo, Alberto tentara perceber de onde e como surgira Xavier e, inadvertido, o encapuçado dos anúncios da Sandman de quando era miúdo, emergia. Quando o Leiria subira trazia quatro tijolos de quilo que tratara de arrumar antes de ir ter com Alberto e fora assim, pelo canto do olho, que ele ficara a saber quem era o fornecedor.
- Não te contei? Depois de por três vezes me ter posto cola na fechadura, deixou-me um cartaz à porta, uma folha A3, letras garrafais a marcador preto, tudo muito improvisado e cheio de fita-cola e sabes o que dizia? ‘Sabem quem mora aqui?’. Sim, exactamente isto, ‘Sabem quem mora aqui?’. Durante uma semana e pico, tive que acordar cedo. Ele punha-os de noite eu retirava-os de madrugada. Tirei quatro. Depois desistiu. Há uma ética tácita… há limites, e ele sabe.
- …e se quisesse deixar-me prostrado a um canto ou matar-me já o teria feito. Ele não é estúpido, é só aldrabão.
Um dia, insatisfeito, decidira simplesmente mudar de fornecedor e tivera para um mês, inclusive ameaças de denúncia. Alberto, acaso pensasse nisso, ainda se espantava. A verdade é que o Leiria aproximava-se dos trinta e cinco anos de actividade sem nunca ter tido grandes problemas. E os que tivera, como o assalto que determinou os alarmes que agora enchiam a casa, haviam sido rapidamente resolvidos com a expulsão de algum cliente dado a outros produtos do mercado e incremento da segurança. Uma coisa toda a gente sabia, o Leiria só negociava em tijolos, ocasionalmente psicadélicos com os mais íntimos. Em sua casa, na salita de uma só pequena janela, não se bebia e não se fumava, muito antes da vaga proibicionista.
- O Xavier aparecia sempre a cheirar a álcool, lamentava-se.
Tivera hepatite C e tinha o fígado de um morto a funcionar dentro de si. Mas acaso a atribulação diminuía o encanto descentrado do quotidiano do Leiria? Nem um degrau. O mundo do Leiria era exacto como um relógio e, contudo, à prova de realidade. Um mundo onde calhaus e penedos podiam aparecer e desaparecer por obra de espíritos e onde todos os encontros eram inconfidências mágicas e sinais. Passou pela hepatite e pela incorporação, como lhe chamava, como por uma proeza sensorial. Entretanto, engordara e o transplante tornara-o mais luzidio, as mãos papudinhas a terminar em dedos finos como patas de aranha e povoara os espaços entre as fotografias de pedras com recortes de super-heróis do Mundo de Aventuras, de que tinha os primeiros números.


A hora de Alberto terminara, era hora de ir passear a Setter. Descidos os degraus, o Leiria espreita pela fenda da caixeta do correio, move os trincos e entreabre a porta, olha à direita e à esquerda e volta-se para dentro.
- Podes ir.
Claro que Alberto entendia o Leiria. Infelizmente para o Leiria, aquela sua história era pouco povoada. Que mulher, em seu mais imperfeito juízo, abraçaria tão desconforme modo de viver?
- Da próxima contas o desfecho, disse-lhe Alberto.
Fosse como fosse, o Leiria caía sempre de pé. Ocorreria outro sinal, outra coincidência, outro teste, um afirmar recuando, e Alberto, na margem da margem, ouvi-lo-ia novamente pontificar na serenidade da sua divina, feliz anomalia.
Ainda ouviu os trincos fecharem-se. Depois entrou no carro.

quinta-feira

Lixo


Ela fitou-o indignada, com os olhos que Deus lhe dera como jóias fundas, negras, implacáveis. Ele limitou-se a devolver-lhe um espelho azul-claro, os lábios entreabertos, tensos naquele sorriso nem sim nem não, os olhos largos para que ela neles coubesse. Ela remirou-se, a sua imagem a revolver-se naquele claro de olhos e algo nela cristalizou como o gelo.
Ele não tinha esse direito, na realidade ele nada tinha de seu, e que ele envergasse olhos translúcidos de bebé que agora a reflectiam era uma desonestidade da natureza. Nesse momento, rasgou-o de cima a baixo.

- Não, ele nunca poderia ter-me dentro dos olhos, disse a desenhadora apartando o cabelo e deixando cair as duas metades da folha no cesto do lixo.

quarta-feira

Na pele



Tu conduzias-me de regresso a casa (tinhas umas boas ancas, e se curvavas eu morria). Deste-me boleia e, nada menos natural, casamos.
Agora, os meus pés de manhã vão à casa de banho com café nos olhos (e olho as mulheres que passam por nós em qualquer caminho) e noite após noite, sozinhos, bebemos as últimas luzes da televisão (mesmo se continuas a ser um par de pernas).
Na vida, mulher, as coisas aparecem e desaparecem. E rapidamente, o túmulo reflecte-se na pele.

segunda-feira

Os pássaros


Acordas, o sol funde o estore, ainda não são dez horas e as listas de sol queimam a pele e batem-te nos olhos desenhando uma faixa de fogo. Bebes o café e abres uma embalagem de salmão fumado que entremeias com uma cerveja. Os pássaros esvoaçam em redor, chilreando. É sábado, até segunda-feira. Acabaste de te recostar na cadeira. Nesse preciso momento toca o telefone.
- Podes vir cá?
- O que é que se passa?
- Vem cá, é melhor vires cá, podes vir?
- Claro, Vico, vou tomar um banho rápido e sigo.
Tomas um duche e vestes-te rapidamente. Estás preocupado, sabes que é de estar preocupado. Eram sarilhos, sempre que ela telefonava. Agora era o Vico, a voz transtornada a esforçar-se por ser tão comedida como a do adulto que ele sentia que começava a ser. O carro voou-te e em menos de quinze minutos estavas a bater à porta.
- A tua mãe? Ainda mal pronunciaste a última palavra, ela acode-te meia ainda na sombra mas dirigindo-se-te e para a luz. - Que aconteceu Vico? Vico, Frederico de seu nome próprio, encolhe-se para a sombra. - A mãe, tratas dela? Se houver alguma coisa telefonas?
Ela encaminha-se silenciosa para o portão cingindo o casaco. Tu fazes uma festa rápida no cabelo de Vico e segue-la. Por debaixo do casaco, imitando pele de raposa, enverga umas calças de pijama muito curtas de terylene azul-claras e meio rasgadas e umas texanas calçadas à pressa.
- Que se passa desta vez, Luísa?
- Já não aguento, Álvaro, e não é desta vez. Já não aguento.
- Por favor, Luísa, o Vico decerto não me telefonou …
- …para que eu te dissesse que já não aguento. Continuas o mesmo. Queres que te diga o quê? Porra, Álvaro, porque não me abres a porta do carro e te calas? Calaste-te e abriste o carro, ela entrou, tu, sem fechares a porta, sentaste-te a enrolar um cigarro.
- Ok. Já estamos no carro. Vais contar-me o que se passou?
- Podes deixar-me numa pensão?
- Luísa, estás completamente bêbada e são apenas onze e meia da manhã, as pensões são para se dormir, não têm matiné! Luísa tinha os olhos como insectos vermelhos, tinha chorado e os olhos cuspiam pelos vasos um vermelho que lhe ameaçava as pupilas. Tu acenderas o cigarro, fecharas a porta, rodaras a ignição e começavas a descer lentamente a rua onde estacionaras.
- Não te levo a pensão nenhuma, vens lá para casa. Agora, vais-me dizer o que aconteceu? O Vico telefonou-me…
- O Vico é um miúdo maravilhoso. Luísa desata a chorar, aquela cara bonita de olhos verdes era um destroço. - Andamos à estalada.
- Tu e o teu marido, num sábado de manhã? Não gostam de televisão?
- Desculpa. Vamos para minha casa. Lá contas-me.
- Não queres antes ir beber uma cerveja?
- Tenho cerveja em casa, aí umas vinte, chegam?



Abres a porta do frigorífico e tiras duas cervejas, ela senta-se junto ao estirador, a olhar para os papéis que ali se atafulham. Tem na cara marcados quatro dedos, uma nódoa negra do lado oposto da boca e um pouco de sangue no lábio inferior.
- Não tens antes cerveja natural, é que eu já não faço digestões normais. Há já uns anos que nada é normal comigo.
- Queres contar ou queres beber?
- Quero beber.
Luísa era uma mulher lindíssima, uns olhos verdes enormes, o cabelo quase todo ainda preto, apesar dos seus quarenta e três anos, e que bebia em demasia. Mas quem eras tu para a julgar? - Foi por gosto, a trolha? Inquiriste divertido.
- Vai-te foder, Álvaro.
- Ele era o homem perfeito, lembras-te com certeza. Ao contrário de mim ele era exemplar!
- Ele é exemplar, Álvaro. Eu não sou exemplar, não saio à mãezinha dele, não faço o que a mulherzinha dele devia fazer, percebes? O problema, desta vez, sou eu. Eu não consigo cobrir tudo o que ele simplesmente não faz.
- Ouve, tu já não és casada comigo, na altura era eu quem não era perfeito…
- Foste tu…
- Por favor, Luísa. Desta vez o que é que ‘fui eu’! És capaz de me dizer? - Porra, Álvaro, tu puseste-me a beber. - Ninguém põe ninguém a beber, Luísa. Foi por eu beber que nos separámos, recordas-te? O pugilista não bebia, era perfeito. - Quem ganhou? Aposto em ti.
- O Vico apartou-nos, eu desfazia-o, vontade não me faltava. Foi para o quarto. Foi quando o Vico resolveu telefonar-te.
- Estás com um péssimo aspecto. Não deves beber tanto.
Luísa sorri e abraça-se-te. - Olhem para o pregador! E depois a choramingar. - Ele não ficou a rir.
- Vou fazer a cama. Mais essa e vais descansar, estás precisada. Quando estiveres descansada decides, ou ficas ou levo-te aonde quiseres. Luísa acata. - Há muitos pássaros por aqui, nota.



Passa das duas da tarde, Luísa deitou-se e tu tratas de tranquilizar Vico.
- O teu padrasto?
O pugilista não era má pessoa, na realidade era advogado, trabalhava numa empresa que falira e agora no escritório de um tio onde ganhava muito mal. Na verdade, nunca o imaginaras a levantar a mão fosse contra quem fosse. Vico gostava dele e ele era um melhor pai para Vico do que tu alguma vez foras. De certo modo, mesmo se nesses momentos o desprezavas, chegavas a ter pena dele, conhecias Luísa demasiado bem. Não que o senhor perfeição fosse assim tão perfeito, não era, ninguém é. E sabias que Luísa tinha razão em tudo que lhe apontava, sem ela a casa afundaria lenta e irreversivelmente, por simples inércia. Não deixava de ter a sua piada, vê-la obstinada em salvar o casamento depois de explodir com ele.
- Não saiu do quarto. E a mãe?
- Ela logo volta, volta sempre. Em todas as famílias, Vico, há alegrias e horrores, já começas a ter idade para perceber isso. Agora deixemo-la dormir, Vico, ela vai precisar muito dos teus abraços quando voltar, não te esqueces de a abraçar muito?



Olhas para o relógio grande da cozinha. São cinco e vinte, o sol agora bate do lado ocidental ameaçando inundar a cozinha e a sala. Luísa ainda dorme. Abres um pouco as portas de vidro e baixas os estores, há uma brisa que circula, mesmo se o dia permanece quente, o chilreio dos pássaros entra fresco com a brisa. Tudo começara na véspera. Já a noite deveria ter perdoado muita coisa quando a manhã te surpreendeu. E que tinhas tu a ver com tudo isto? Sim, era uma boa pergunta, infelizmente uma para a qual não tinhas nenhuma boa resposta. Havia Vico, um filho em comum, mas a verdade é que acontecesse o que acontecesse ela chamava e tu ias, telefonava-te e tu esmorecias, insultava-te e tu desligavas-lhe o telefone para logo voltares a atendê-la, sabendo que era ela ainda, tão bêbada como antes, certamente mais.
- Tu, meu filho da puta, tu nunca gostaste de ninguém. Nunca quiseste conhecer-me, queres é que te deixem em paz, mas eu estava feliz e em paz e tu vieste e casaste comigo.
Eras uma besta, não discordavas, mesmo se não te fazia mais feliz. Não mudaras muito, entretanto. Mas porque carga de água tinha ela que te telefonar para to recordar, sempre que estava com os copos?
Uma vez, disseras-lhe que ias deixar de lhe atender os telefonemas a partir do meio da tarde, o que ela não te insultou. Que bêbado eras tu, e tu reconhecias, que sim, que era verdade, mas que não lhe telefonavas a destratá-la sempre que bebias. - Luísa, dizias-lhe, mata esse Álvaro que te fez tanto mal. Não será agora que irei surpreender-te e, a ti, a minha memória faz-te claramente mal, faça eu o que fizer.
Abriste mais uma cerveja e enrolaste um charro. Estás de novo na varanda e o odor mesclado das últimas flores do jasmim e das primeiras glicínias atordoa-te. Súbito, os pássaros desapareciam, o ar acinzentara-se coberto de nuvens pesadas e ameaçadoras e só o planar das gaivotas garantia que o mundo não ia acabar.
Foi quando te levantaste, para ir procurar outra cerveja, que a viste. Acabara de acordar, o cabelo enredado, os olhos a pesarem no rosto como bolas de ferro ainda quentes, as pálpebras coladas, na mão uma cerveja. Apoiava-se na estrutura metálica das portas de vidro e olhava-te.
- Bem disposta? Há café, tostas, queijo, salmão fumado e ovos, o que vai querer a nossa bela adormecida?
- Por que é que não deu certo?
- Café?
- Café. Eu sou maluca, não sou?
- Com tostas?
- Apenas café. O que é que tu pensas de mim?
- Tento não pensar, mas tu não deixas, sorriste. A seguir desaparecias na cozinha e voltavas com dois cafés mais um prato com queijo e tostas.
- Falei com o Vico. Que vais fazer?
- Vim estragar-te o fim-de-semana… posso tirar outra cerveja?
- Há quem goste de vidas coloridas, moi, eu estava de calções de praia e boné a bebericar uma cerveja na varanda num sábado morto. É claro que podes, e é claro que estás a beber demais e é claro que a minha tranquilidade se foi, que mais queres que diga? Porque é que vocês andaram à porrada?
- Nada. Sabes como é. Luísa manipulava uma bonequinha de plástico articulada que tinhas na estante, dez centímetros de gente, tentando sentá-la na pequenina cadeira de verga de escala aproximada que também ali estava. Lá equilibrou a boneca e torceu-se, pousando finalmente os olhos em ti.
- Não te preocupes, sabes como é, eu bebo a minha cerveja e vou-me embora e tu voltas a fantasiar-te.
- Sei como é? Não, não sei como é. Porra, Luísa, estou eu sossegado a coçar as virilhas e o Vico telefona-me aflito e estás aqui e não há nada e acabas de beber a merda da cerveja e voltas para casa, tipo vou mijar e venho já? Merda, Luísa. Isso não é amor, isso é doença.
Ela odeia-te por isso, vês-lhe nos olhos. E, no entanto, não fora ela quem, mais do que uma vez, te dera a entender já nada existir entre ela e o pugilista? Houvera pelo menos três amantes; o último, o psiquiatra. Mas até tu percebias que ali havia algo inexplicável, estavam presos um ao outro por uma promessa de sofrimento.
- Que sabes tu de mim, diz, que sabes tu da minha vida? Luísa tem o dedo indicador em riste à frente do teu nariz. - E se eu te disser que ele não se arranjaria para viver sem mim, que onde tu vês a doença eu vejo um futuro preso das minhas mãos. Que sabes tu de nós?
- Nada, Luísa, nem quero saber. Simplesmente, não te quero ver a lisonjeares-te com os teus sofrimentos como os velhos.
Não conseguias evitar sorrir quando a vias amparar o futuro como uma preciosa relíquia. Em matéria de futuro, a presunção não parecia ter limites. A ti restava-te continuar em frente até um dia parares sem que chegasses a lado algum, sem que vencesses fosse o que fosse, a não ser o próprio tempo. Mais cedo do que tarde a onda submergiria no oceano, de um modo ou de outro.
- Quero lá saber do amor, Luísa, vê se percebes, quero apenas que esqueças de uma vez que eu existo. Batam-se, matem-se, mas deixem-me em paz. Começas a parecer a Laura!
Recebes um par de estalos.
- A puta que o pariu, percebes? Diz-te ela, está sobressaltada, os olhos enormes fitam-te, cheios de um ódio imenso. Sem que possas dar-te conta dos teus movimentos, levantas a mão, mas conténs-te no último minuto. Estás a ficar velho, a tua mão baixa, lassa, e abres o frigorifico. Retiras duas cervejas, a tua vida vai continuar depois disto, é o que sabes do futuro; do amor sabes ainda menos. Passas-lhe uma e sentas-te no estirador a enrolar um charro. - Foi assim, a anterior? Desataste a cascar-lhe por água vai?
- Foda-se, Álvaro… A Laura? Comparas-me com a Laura?
Laura, tanto quanto agora interessa, era uma irmã mais nova do pai de Luísa, uma mulher hipocondríaca, mergulhada em comprimidos, mais tarde também em álcool, a viver sozinha, abandonada pelos filhos e que periodicamente telefonava aos irmãos que ainda lhe atendiam as chamadas, a pedir diferentes somas de dinheiro. É o suficiente para se perceber que foras infeliz no comentário, não para apreender toda a intensidade da dor nos olhos que Luísa te voltou.
Sempre que aparecia, Luísa, trazia consigo um sem-fim de esperanças como flores secas, como se te pedisse que as defraudasses uma a uma. A vossa relação não era mais simples do que a deles. Ela continuava a procurar-te, vá Deus saber porquê, e tu insistias em a amesquinhar. No meio de tudo isto, duas certezas tu tinhas. Sabias que a amavas. Compreendias que não podias deixar de a ferir.
- Tu sabes o que quero dizer, Luísa. Não te quero comparar à Laura, apenas talvez te queira feliz e não…
- … neste caminho que achas que vai dar à Laura!
- Não tens de me ter sempre diante de ti, não sou o teu gémeo. Como tu dizes, nunca gostei de ninguém e nunca te quis conhecer ou fui incapaz de o fazer. Sou uma besta, estás farta de o dizer, e, em matéria de relações, tal como o pugilista ou pior. Mas não tenho que dar a outra face, Luísa; estamos a ficar velhos para isto.
- Dares o quê? … Os olhos dela fuzilam. - Eu não sou o teu bode expiatório, quem julgas tu que és para poder julgar-me?
- O gajo em cima de quem tu cais? Que queres dizer com bode expiatório, Luísa, este diálogo é de loucos. Vocês batem-se, eu vou-te buscar e tu vens a minha casa dizer-me que eu faço de ti o meu bode expiatório?
- Estás a dizer que eu estou louca, é isso?
- Não, não estou a dizer, tu estás maluca e ponto final ou vais bater-me de novo?
Tens vontade de a abanar, de a abanar até que serene, mas sabes que isso não é possível, Luísa, bêbada, é como um vulcão, a raiva só se extingue quando toda a matéria calcinável foi vomitada, aí desata a chorar. Desistes.
Luísa deixa tombar a cabeça sobre o teu peito, a tua inabilidade para amparar a dor do outro torna-se convincente. Batem as dez e restam duas cervejas e o teu mundo bóia em contradições.
- Tu, ao contrário dele, nunca me amaste.
- Também nunca te bati. Queres que te leve? Não há nada mais que lhe possas dizer.
- Não.
- Se quiseres podes ficar, já conheces a casa.
- Não, vou para casa. Vou tentar esquecer-me disto tudo. Fez uma pausa para acender um cigarro. - É sempre um erro vir ter contigo.
- Então fica, peço-te, já é noite e olha para ti.
As calças de terylene azul-claras, demasiado curtas e rasgadas sobre as texanas, o casaco de imitação de pele de raposa apertado para esconder o top cor do céu do mesmo pijama, o cabelo desgrenhado apertado num nó, a cara deslavada e os olhos vermelhos, injectados, pejados de pequenos insectos de sangue, as olheiras empoladas como beringelas anãs, a cara marcada, o lábio ferido, Luísa, na rua, naquele aspecto, não enganaria ninguém e custava-te antevê-la a calcorrear as ruas naquele estado. Já não és casado, mas também já não és um solteiro. Tens preocupações de casado, sentes-te a tê-las… Ela ri-se-te.
- Há pessoas que decidem a sua infelicidade e assim se tornam felizes. Só te quero feliz. Abraçaste-a com intensidade e deste-lhe um beijo na testa.
- Sabes que desta vez vou ficar até ao fim, não sabes?
- Sei. Não te percebo, mas sei.
- Obrigado. Eu… tu sabes como é. Vou.
Quem realmente, naquele momento, iria atravessar-se-lhe ao caminho? Ela decidira e também decidira que nada lhe podia acontecer, Luísa decidia tudo e, mais uma vez, teria razão, mesmo que a não tivesse. Ela iria, do mesmo modo que ficaria, assim o decidisse.
- Dá-me uma passa. Já te disse que o tempo não passa por ti?
Fumou-te meio charro, acabou uma última cerveja e rasgou meia cidade a pé naquele estado andrajoso e determinado que conhecias dos ressacados que desciam a rampinha como se uma força imparável os movesse e, caso resolvessem parar, os atropelasse. Foi a melhor comparação que te veio à cabeça. Também ela continuava a rapariga cheia de garra porque te enamoraras.
- À sua maneira, ele ama-me. Estou certa disso.
- Não é má gente, o pugilista.



No dia seguinte tinhas duas mensagens. Uma marcava as oito horas e dizia: ‘Bom dia. Já estou nos meus passeios matinais. E tu pregador?’. A anterior era de Vico, e dizia apenas: ‘Mãe bem. Bjs’, marcava a hora a que ela chegara a casa. Pegas nos comprimidos, levas o café para a varanda, ajeitas o guarda-sol e recostas-te. De repente, soergues-te e desligas o telemóvel. Voltas a sentar-te. Levanta-se uma brisa e sentes na cara o cheiro batido do rio e do mar. Ouves Torres aLx crepitar e surge-te entre outras imagens a imagem de Vico. Voltas a ligar o móvel.

terça-feira

Um fundo louco de sirenes


Era a voz da número três, a mãe mãe, mãe de ofício alargado que cuidava filharia, qualquer coisa que com menos de catorze anos revolvesse no pátio do recreio. O Monhé cuspia-lhe as ordens e os afagos, mas ela era o eco que o queria imaculado, tirado o rabo do saibro, jamais na boca as pipocas do ranho.
- Olha que te sujas Alberto. - Tira a mão da boca, Alberto, queres ficar com a barriga a doer? - Anda Alberto, chega-te para aqui, para o meu pé, comporta-te, sê um homenzinho. Cheirava a medicamento e creme, a mãe mãe, à sua volta instalava-se um hálito húmido de claustro.
Súbito - Monhé ergueu muito os braços como se procurasse melhor ilustrar o acontecimento -, ouviu-se um assobio de ar, depois um estatelar, cabum, qualquer coisa que caía, talvez um cofre-forte como nos desenhos animados, um grande vaso de barro, a gelosia laxa da varanda, qualquer coisa. E ela, a mãe mãe, num piscar de olhos, ali reduzida a uma lâmina bizarra, pintalgada a vermelhos sujos, a cinzentos de massa encefálica, os dentes cerrados, como grades que protegessem o rosto da deformidade total. A número três, afiançava Monhé, fora literalmente alisada por uma varanda, sim uma varanda inteira que inclinara a pique. Espavoridos, os pássaros tinham levantado um voo tão agitado como eficaz, pondo-se razoavelmente ao fresco dos humanos assuntos.
Ainda mal terminava o Monhé a sua narração, já se ouvia, alteando, a voz da número três, a mãe mãe, tão espavorida para cá, como o voo dos pássaros para lá longe. Atrasara-se quatro minutos, foi quanto bastou. Monhé, absorvido, continuava a olhar o que restava da mãe mãe, as cuecas carregadas de saibro e raspava tranquilamente as pipocas na língua. Ao fundo, começara a ouvir as sirenes. Até que a mãe mãe o puxou por uma orelha, despertando-o para o eterno retorno das aulas, e à chapada lhe esvaziou o nariz de dedos.

Ao Sr. T., agora quase nos cinquenta, ainda o espantam as recordações, como a todos os velhos recentes. E entre todas a expressão inocente de Monhé sobre um fundo louco de sirenes.

domingo

História com o Mercedes castanho


- Esse carro é meu.
O gajo, a perna esquerda dobrada para trás, mexeu os olhos sob os óculos escuros e fixou-o por um segundo sem se desencostar da parede.
- Quero-o, e apontou para o Mercedes 220D, castanho.
- Vai-te embora, velho.
- Eu compro-te o carro. Deste dez gramas por ele. São quinhentos euros. Pega. Dá-me as chaves.
O outro continuou sem se mexer. Ele estendeu-lhe as notas.
- Estás parvo ou quê, velhote?! Põe-te mas é a andar, a menos que queiras que eu te ajude.
- Quero o carro. Eu dou-te os quinhentos euros e tu dás-me as chaves.
O gajo desencostou da parede e acendeu um cigarro, enquanto olhava o velho com interesse. Tinham mais ou menos a mesma altura, mas ele era mais pesado. Olhou para os outros, todos os olhos estavam postos neles. Transeuntes passaram quase pelo meio deles e um autocarro surgiu na ponta da curva fazendo chiar as rodas.
- Queres levar o carro, velhote? Quinhentos não chegam.
- Dou-te quinhentos.
O outro encostou-se de novo à parede, as mãos metidas nos bolsos das calças. Ouviram-se risos, depois ouviu-se o silêncio nas mesmas bocas.
- Dou-te quinhentos… ou isto. Os seus olhos incendiaram-se numa expressão de aversão e, grotesco, o orifício prateado da velha Walther do exército brilhou na direcção do outro. - … e tu dás-me as chaves, de uma maneira ou da outra.
Os óculos escuros imobilizaram-se-lhe. O orifício da pistola ainda lhe apontava o peito e impunha um desusado silêncio à sua volta. Endireitou-se e a boca torceu-se-lhe num sorriso rígido, mas divertido, o olhar fixo, enquanto metia a mão no bolso. - Pega as chaves, velho, e guarda essa coisa. Ele, sem baixar o cano, passou-lhe as notas.
- Não voltes a fazer isto. Pode-se morrer disto!
- Da próxima vez, não virei para falar contigo. Já matei gajos melhores do que tu.



Passou no apartamento para guardar a pistola, verificou pela última vez o que estava dentro da mala e do saco de viagem, fechou-os e meteu-os na mala do carro e dirigiu-se a casa da ex-mulher. Luísa estava no jardim. Atravessou a casa de um lado ao outro e pela porta vidrada da sala avistou-a sentada num dos bancos a ler. A luz das lâmpadas agasalhava o céu e o jardim quase parecia encantado. - O João está cá? Luísa levantou os olhos do livro. Estava corada. - Não podes entrar aqui como se fosse a tua casa, Ernesto!
- Onde está o João, Luísa, só quero falar com o João.
Luísa deixou-se cair sobre o banco. - Está no quarto. Aconteceu alguma coisa?
- Nada de especial, não te preocupes, só preciso de falar com ele. Não te preocupes, a sério.
Voltou-se, atravessou a sala e subiu ao quarto do filho. Bateu na porta. João estava deitado na cama, de lado, as costas voltadas para a porta. Chamou por ele e o filho ergueu a cabeça que logo lhe descaiu para a almofada. Abanou-lhe o ombro e chamou outra vez. O estojo de inox estava aberto sobre a cama e a colher e a seringa pousadas na tampa caída para trás. Havia gotas de sangue no edredão.
- Vai-te lavar, disse-lhe. Vens jantar comigo.



- Como é que encontraste o Mercedes?
- Sei onde vais às compras. Dei umas voltas e tive sorte.
- A mãe não me deu dinheiro.
Ernesto olhou o semáforo parado no vermelho. A mãe não me deu o dinheiro, repetiu para si mesmo. E aqueles gajos que pediam nos semáforos, a quem a mãe não dera o dinheiro? Ernesto tentava passar à frente, saltar a pés juntos aquela ferida. O carro seguiu na direcção da Baixa. João, sonolento, olhava em frente, as pálpebras inchadas, lavradas de olheiras avermelhadas.
- Estou reformado. Hoje, fui pela última vez ao QG. - Vou deixar tudo. Fiz uma casa. Vou-me embora hoje mesmo. João olhou finalmente para o pai, mas o carro virara subitamente à direita e ele voltou-se para a frente, sem que se fixasse em ponto algum.
- E o vício?
- Se for preciso, vimos comprar.
João não respondeu. Nada tinham para dar um ao outro e também era demasiado tarde para que alguém pudesse verdadeiramente salvar ou demolir o outro. Seguiram em silêncio até ao restaurante. Ernesto levou-o ao mesmo restaurante onde iam quando ele era miúdo e estavam sozinhos, sem Luísa, mas jantaram calados. Apeteceu-lhe abraçá-lo, puxar-lhe os cabelos, desancá-lo, deixá-lo de cama, cerceado numa camisa-de-forças, depois ficou-se, os olhos fincados em João, a memória transportando-o para o jardim de Luísa. Aquele jardim que já conhecera e já não reconhecia mais, refúgio de histórias muito antigas que continuariam por certo a desenrolar-se para sempre, bem no centro da velha cidade, mesmo que não o pudessem tomar por protagonista, não já a ele. Crescia-se de cada vez que se destruía uma história maravilhosa. No fim não sobraria nenhuma, era uma história triste.



Passaram meses. Um dia, Luísa telefonou-lhe para lhe dar a notícia. Ernesto primeiro emudeceu. Não conseguiu chorar e a seguir teve um acesso de fúria, depois recusou ir à cidade, a menos que voltasse com João.
A lua cheia ia alta no céu. O vento batia-lhe com força na cara e atropelava tudo à sua frente. O homem fez frente ao vento, as pernas abertas e os pés fincados na terra, e o vento trouxe-lhe o rugido do mar, a espumejar lá em baixo, contra a falésia. Tinha pena. Mas não era responsável por aquilo. A sua vida tinha sido a que ele tinha conseguido ter. Um pai não tinha de arcar com os erros dos filhos como se fossem um prolongamento dos seus. Luísa, ele, algo se tornara impossível muito depressa, mas isso acontecera consigo, fora o seu casamento que ruía. Luísa não era mais responsável do que ele mesmo, nenhuma mãe podia ser responsável por viver numa casa vazia, cheia de recordações mortas. Haviam feito o que estava ao seu alcance, o que achavam melhor. Ali, na borda da falésia escarpada, o homem pensou como tudo era efémero e desejou ter todos os gestos de ternura de novo. Ser pai do João de novo. Fazer tudo ao contrário. Fazer melhor. A sua vida não fora a que ambicionara vir a ter. De repente, sentia-se distante de tudo e com medo. Mas continuou à espera do filho. Quando Luísa lhe telefonou pela segunda vez, quase um mês mais tarde, meteu-se no carro e foi buscá-lo, mesmo contra a vontade.
- Continuas com o Mercedes, foi o que João disse toda a viagem, o resto do tempo passou-o calado, como se não tivesse consciência da presença do pai.
Viu a estrutura de um circo que desarmava as tendas e que antes da noite teria levantado acampamento, figuras, todas elas empurradas pelo vento, em que tudo dependia de bons e maus ventos. Momentos houvera em que João quisera ser o filho perfeito de seus pais.



O candeeiro de pé estava aceso e mergulhava os recantos da sala numa penumbra plácida. Ernesto pendurou o casaco no cabide e tirou do bolso o pequeno saco de plástico e subiu as escadas com ele na mão. A porta estava aberta e um halo de luz escapava-se, empurrado pelo candeeiro na mesa-de-cabeceira. João estava deitado, coberto até ao peito e com os braços esqueléticos dobrados sobre a roupa. Era Outubro e não estava frio, mas João tremia compulsivamente.
Ernesto chegou-se à cabeceira da cama e repuxou-lhe o edredão e as mantas e ajeitou-lhe a almofada. João suava e os fios de cabelo colavam-se-lhe à testa pálida e pronunciada, tinha os olhos fechados, exagerados nas órbitas cavadas; sob as pálpebras, as pupilas estremeciam. Afastou e acariciou-lhe suavemente a testa e o cabelo com a mão e o filho abriu os olhos. Apeteceu-lhe dizer-lhe qualquer coisa, mas não falou, limitou-se a sorrir e a apertar-lhe a mão.



O homem sentou-se na cama e colocou na mesa-de-cabeceira a ampola que retirou do pequeno saco de plástico. Abriu a gaveta e pegou no estojo de inox. Junto da ampola, estendeu a agulha e a seringa. Fez todos os gestos meticulosamente, uns a seguir aos outros numa sequência harmoniosa. João voltara a fechar os olhos e tremia, então o homem levantou a ampola, fitou-a, espetou-lhe a agulha e encheu a seringa com o líquido incolor que rebrilhava à luz do candeeiro, finalmente pressionou o êmbolo até sair uma gota e pousou a seringa.
Procurou uma veia no corpo sumido. Espetou-lhe a agulha nas costas da mão direita. Quando acabou, as tremuras começaram a abrandar e pararam um minuto depois. As pálpebras do João quedaram-se sossegadas. O homem agarrou-lhe a mão e empurrou a boca contra a sua testa, com os olhos bem abertos, e só quando a mão do filho ficou inerte na sua é que ele descolou os lábios e enterrou o rosto na almofada por uma eternidade. Sentia uma dor insuportável. Lentamente, como se tivesse sido retirado para fora da agitação do tempo, olhou o rosto de cera do filho e guardou a seringa e a ampola vazias no estojo de inox, desceu as escadas e apagou o candeeiro de pé.
Na cozinha, enfiou o estojo num saco e meteu-o no lixo, pôs o casaco e saiu. Os braços pendentes, olhando o céu imensamente cego e a espuma suja das ondas. Cá fora, o dia parecia querer erguer-se precocemente e o vento acalmara. Estava fresco. Desceu à praia e caminhou na areia sem pressa, até serem horas para telefonar a Luísa.


De repente, sentiu muito frio, como se estivesse a chocar uma doença, sentiu que podia ser o frio de João, e sentiu que era necessário que chorasse, também era necessário que chorasse. E chorou.


(A.A.)

Três máximas para uma 'vida boa'


Quando a morte de outro se anuncia, ainda não foi a tua vez.

Não dependeres de nada e saber que nada depende de ti.

A estupidez natural deixa-te tranquilo. Um género resistente à estupidez não duraria muito tempo e os deuses precisam de tempo para brincar.

Uma planta perfeita


- Tirei-o com a mão. Tomei a pastilha e tudo se precipitou, como um cacho de uvas de células. Tive que mergulhar a mão no sangue e puxá-lo, já era um bonequinho, percebes, um boneco morto, azul e vermelho, uma morte suja. Tive que meter a mão, Max, como quem desenraíza uma planta perfeita.
- Não era uma pessoa, Eva.
- Então era o quê Max?
- Uma parte de ti que estava doente, que houve que erradicar. Foste sujeita a uma pequena cirurgia, é como se te tivessem tirado um quisto.
- Um quisto, Max? Um quisto? Como podes dizer isso?
- Não sobreviria, Eva. Nem ele, nem tu, não assim.
- E achas que eu sobrevivi? Eu queria-o.
- Estou apenas a dizer que ele não era uma hipótese. Não era ou tu ou ele, mas ou tu ou nada, percebes isto?
- Não. Nunca perceberei. Nunca perceberei o porquê da depressão, dos médicos, dos comprimidos, porque os deixei intrometerem-se entre mim e… ele. Mataram-mo. Mataram-me. E nunca te perceberei, Max, como podes tu permanecer tão ponderado, quando… Era tão mais simples se a dor fosse tua, fosse tua a culpa, tua…
- Culpa, Eva? Não há culpa. Ninguém pode ter culpa...
- Sim, a tua culpa. Porque no fim é da tua culpa que eu sou culpada. Ela veio antes de mim, a tua culpa. Mas fui eu que o arranquei com as mãos, onde estavas Max, quando o arranquei com estas mãos?
- Eva…
- Odeio-te! Sai. Sai.

sábado

O tio


Sirenes, tiros e a grande atroada das Torres que gemiam pelos seus filhos, tudo ouvi sem ir à janela, já não vou à janela.
- Que idade tem? perguntou-me a miúda. - Quarenta e oito anos, Natércia, porquê? - O meu tio tinha quarenta e seis e morreu ontem. Natércia tem dezasseis anos, durante a noite perdera o tio. Desta vez não houvera tempo, ninguém se apercebera até acontecer. De um momento para o outro a polícia estava por todo o lado e a confusão instalava-se em Torres aLx. O tio da Natércia, vim a saber, tivera tempo para engolir a droga que lhe rebentara no estômago, matando-o. Durante uma semana Natércia dormiu no quarto da avô. - Lamento, Natércia.
- Professor? - Sim, Natércia. - Quer ver a prenda que comprei para o dia da mãe? - Quero, Natércia, disse eu. - A minha mãe acha que lhe vou dar um ramo... - Olhe! Abriu um bauzinho azul-escuro e de entre o algodão retirou um fio com dois corações soldados na diagonal de quinquilharia a imitar ouro.
- Leia! Li, na parte que pousava sobre o peito dizia apenas 'irmãos para sempre'. Fiquei muito calado a sorrir com ar de parvo para a Natércia, a seguir disse-lhe: é lindo, Natércia.
Não era, era horrível. Mas eu nem fora à janela.