quinta-feira

Uma história de Natal


Não soasse o telefone, ninguém se lembraria. A rapariga fora contratada para a noite. Cuidava-do-casal-que-já-devia-ter-morrido-mas-não-morria. Era a hora da caminha. Fazer ó-ó não era muito diferente do que eles faziam já, mas a rapariga não teve forças. Sim. O velho resistira. Inteiriçara-se, como fazia perante estranhos, e acabara tombado entre o sofá e a cadeira de rodas, muito, muito antes do quarto, gemendo, e incapaz de se mover. A rapariga-aflita pegou no telefone que repicou na orelha da festa.
- O pai caiu, a rapariga não consegue... Vou ter que lá ir.
- Eu vou contigo – apesar da resistência fui.
- Sabe quem está aqui? O Alberto, lembra-se do Alberto? … sim… o irmão da Néné, não se lembra? Ele sabia que não.
Alberto, pelo contrário, percebera o que ali havia de um estranho reconhecimento que jamais eclodiria em palavras. Ele era mais uma névoa, mas, sim, ele estava lá.
- Ela sabia…
- Já de pouco dão fé. Por vezes, não me reconhecem.
O filho agarra o pai e puxa-o, os braços em volta das costelas: parece segurar um saco de batatas demasiado a resvalar por todos os lados. Faz-lhe uma festa. - Posso?, pergunta, e olha-o enquanto o eleva até à cadeira, depois da cadeira para cama.
O quarto, duas camas com sistema elevatório atrás e à frente, é branco cal e cheira a hospital, não a extrema idade. O odor da velhice é outro. Olho a rapariga que esfrega nervosamente as mãos. Olho-a da face aos pés e de novo, lentamente, percorro-a no sentido oposto, enquanto se dobra, atrapalhada, falhando ajudar. Ela está demasiado concentrada para poder perceber a indecência do meu olhar na casa da morte.
É a vez da mãe. A mãe fala, a mãe tenta lembrar e tem o cabelo pálido e ele pousa-a na sua cama, beija-a na testa, diz piadas que ela não entende, ela, para ali, paralela ao pai, lado a lado, ambos embrulhados como mortos imaturos.
- Vi o modo como a mão do teu pai pousou na tua cara.
- Viste o que sobra de um pai. Eu vira uma ânsia onde ele tinha que ver um corpo incontrolado, nunca o pai. Ia dizer-se-lhe o quê?
- A tua mãe reconheceu-me, só não conseguiu situar-me.
- Talvez.
Voltámos à festa. Ele guiava, sem abrir a boca.
Eu pensava em voltar atrás; talvez conhecer melhor a rapariga.

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