terça-feira

O facto é que eu...


Saio no salto mesmo da janela e atiro a arma para o chão (um relvado pontilhado de azáleas e rodeado de muretos de hidrângea, algumas árvores, um lajeado em serpentina), as mãos bem espetadas, os dedos abertos (estou a entregar-me, levanto bem os dedos, não disparem), pronto a saltar (talvez metro e meio, um pouco mais, não sei, a janela era térrea, abri os braços). Acho que é neste momento que sinto o cowboy (nunca tive tantos olhos voltados para mim, todos à espera de um deslize). É quando ela salta no ar a dardejar a morte (acidente, diria depois o arquivo, estupidez, sim, mas eu tinha de largar a arma…). Uma bala vara-me o peito. Depois, explode algo na minha cabeça.
Como as fotografias desapareceram dos arquivos da polícia, não sei (mas posso dizer generalidades sobre corrupção e interesses). Anos depois, apareço na televisão, rosto aberto, horário nobre. Sim, é o meu rosto a preto e branco (sim, parecia eu, mas não era eu, não podia ser). Em letras vistosas, o spot intima: proteja os seus filhos! Não me reconheço de imediato e, quando isso acontece, Eu não era aquele resto (pode ser mania minha, dada a minha situação, mas acho que os mortos merecem o nosso respeito, aquilo fora eu, não era mais). Mas, desse por onde desse, é a captação objectiva do meu rosto (sim, há que confirmar, o desfigurado era eu; ocorre que eu não estava ali como um qualquer filho de uma mãe, a minha inocência não é chamada para aqui, o facto é que eu …).
Anos mais tarde, reapareço nas estações de Metro (tudo acaba por aparecer no Metro, é sabido, eu ainda não sabia, mas ia saber; o primeiro, estava longe de vê-lo, observava eu um japona a tocar Paganini, o gorro no chão para as moedas, e reflectia sobre as disparidades entre culturas, quando ele se desvia num molto impetuoso, e se me depara, não podia acreditar, um espelho de feira; sim era o meu rosto, outra vez). Desta, em placards gigantescos, também a preto e branco, onde agora se lê, a vermelhão, Não resista... este resistiu (era mentira, acabei de vos contar como tudo se passou; eu entregava-me, mas começava a habituar-me a ver-me difamado, a minha cara ultrajada). De calafrio na espinha em hora nobre passo a arrepio das horas sombrias (torno-me uma sombra, uma espécie de pesadelo de passageiros a desoras). É coisa de dois anos, se tanto (sim, foi o que ainda durou a minha morte), depois esquecem-me pura e simplesmente (podem não me acreditar, mas agora eu sei o que é a paz).

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