terça-feira

Apresentação


Tita Dias pediu um Bushmills, depois outro e puxou de um cigarro. O balcão era uma bolha negra e meia dúzia de luzes frias cuspiam as bebidas. Tinha a cara gelada, luvas e um longo sobretudo que tratava de desabotoar quando cruzou o seu olhar com o dela, ainda do outro lado, entre o vidro e a noite fresca do exterior. As T-shirt pretas dos rapazes tremeluziam na luz e uma lista azulada pintou-lhe na cara um esgar sonolento e sinistro. Ela deu-lhe um beijo, os lábios ainda frios, e afastou-se em direcção à sala interior. 'Vens?'. Devia ter recusado aquele trabalho, mas já era tarde para isso. Descascou o cigarro e dirigiu-se também ele para a mesa grande. A sala estava quente e havia gente a pé.
Ela convidou-o a sentar-se; o gajo no meio, ela de um lado, ele do outro, alguns exemplares do livro e os três microfones; não poderia fumar, avisaram-no. Tirou as luvas e deu um gole enquanto os olhos pousavam no título, 'Todos os paraísos são artificiais', depois ergueu nervosamente os olhos para a assistência iluminada pelo borbulhar dos clarões. Era um bom título verdadeiramente perdido num mau livro, o gajo definitivamente não era ... Ela ripostava, 'nem tu Tita'. Ele sorria com um gato pela boca.
A seu lado, uma árvore tropical em polyester, que de dia seria terrível, mergulhava-o apenas mais na sombra, à sua frente posters de cinema americano, do outro lado uma dezena de ecrãs sobre fundo vermelho a fuzilar filmes com Edward G. Robinson. O gajo já lá estava, sentado, um ar repousado, os ombros quase tombando nas mãos aninhadas no colo. Sorriu vagamente e disse qualquer coisa simpática. Ela fez-lhe sinal e soletrou um 'sabes o que vais dizer?' com os lábios. Ele não respondeu.
Era a ela quem cabia começar. No fim falaria o gajo do livro. Para ele ficariam os dez minutos no meio. Um foco explodiu-lhes na cara e ouviu a voz dela dar as boas noites. As janelas ressoavam batidas pelos ecrãs. Passados alguns minutos, novo sinal e o seu nome ampliado pelo microfone. No circo, o momento dos grandes felinos é no fim, quando a plateia está demasiado exausta para os palhaços. A ele cabia-lhe ser o último palhaço, actuaria enquanto montavam os gradeamentos - depois, o gadjo sociologicus.
- 'Todos os paraísos são artificiais é um bom título' - procurou um cigarro no bolso do sobretudo e rasgou a ponta. Esticou o tabaco no papel e começou com o isqueiro a aquecer a pedra que pousava na ponta com o filtro. Enrolou, levou-o à boca e estalou o isqueiro. Definitivamente, era um bom título. Entretanto, ganhava alguns segundos e um silêncio de pedra. Quando recomeçou a falar a desordem dos sons reiniciava e um forte odor metálico enchia a sala. Tinha todos os olhos e rapidamente também os ouvidos. - 'Desde a origem, podemos imaginá-lo, o artifício tornou-se o paradisíaco'. - ' Um pacemaker, um conto-de-fadas, o soma, a máquina...' - largou uma nuvem de fumo espesso e passou-lho pela frente do gajo como se ele não existisse. Ela apagou-o no copo com uma expressão ofendida de austera censura.
Tita Dias continuava, claramente de improviso. – ‘ Já no paraíso se procura o artificio de um outro paraíso, é isso mesmo que nos é dito, salvo erro, cito de memória, em Génesis, 3:6, e é com ele que termino: "E, vendo a mulher que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento, tomou do seu fruto, e comeu, e deu também ao homem, e ele comeu com ela." Fez-se silêncio, Tita Dias esvaziou o copo de um trago, pousou-o e, semicerrando os olhos como se procurasse divisar rostos do outro lado das luzes, concluiu: -'Porque é que a artificialidade está já no Primeiro paraíso? Porque a artificialidade é o homem, senhores. E ao homem não se escapa'.
Quando Tita Dias terminou, o silêncio denso adiantou-se-lhe alguns segundos, depois algumas palmas dispersas estalaram pela sala.
O trabalho estava feito. Foi só esperar que o gajo fizesse os agradecimentos da praxe. No fim decorreria a sessão de autógrafos. Depois, novamente o frio da noite, os gatos. Entretanto, aquela gente acotovelava-se oferecendo o lombo do livro à mão diligente do gajo que não era o…; certamente nunca um dos condenados da cidade.
- Porque fizeste aquilo? - perguntou ela.
- Referes-te... queres um café?
- Sabes ao que me refiro e, não, não quero café. Tita beijou-lhe a testa. - Já tenho idade e não tenho nome a defender, Eva. O gajo era um idiota, não sabem do que falam estes gajos, teve publicidade extra, que mais queres? Vais vender mais livros, Eva. E ninguém virá atrás de mim.
- "E, vendo a mulher que aquela árvore era boa para se comer…". Diz lá que não foi um gran finale, Eva.

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