pequenas histórias de um pequeno símio que nasceu sem querer e que sem que também o queira irá um dia morrer
domingo
À espera de Samantha
Atrás e para o lado direito, a perder-se entre leiras e o arvoredo ralo, algum casario branco e ocre, depois o estorcer inócuo do mar, um branco azul e verde ligeiramente encapelado e baço que rumoreja para lá do paredão.
O ar está quente, um calor húmido que se cola à pele. Sob o alpendre, a mesa é alva e o branco do fato do rapaz de faces rosadas que os recebe, alveja. Na mesa há percebes e o cansaço de sexta-feira, o medronho teofânico e os néctares fermentados que ainda levedam. Há chá de menta. Bolos também, tâmaras.
Ainda tinham uma hora e meia. O Samantha completava quantos anos?
- Doidamorta, gaja mijada, ouve. É o resentadura, velho podre a mostrar a falta de dentes, o cabelo pingado, sempre a abanar a cabeça e a arfar. Doidamorta, gaja mijada, diz o resentadura. E a velha, a beber um tinto compacto junto ao balcão, não ouve. Os olhos são poços e não vê.
Ghirlandaio, faz um gesto alto. Cumprimenta um rapaz manco e negro chamado Amir que vai à faca amanhã e emana um cheiro de âmbar. Há hipóteses de ficar bom, de deixar de mancar, diz-se, e sorve o copo. Vê-se-lhe uma língua desbotada entre os dentes amarelados.
- Duas de xarope prá tosse, miúdo, dispara um dedo.
O sol ainda abrasava nos chapeados lá fora e no branco da igreja de S. Pedro. Cheira a cordas e a óleo de peixe, a engodo. Passa das seis, o peixe seco ainda enche os pátios e os varandins e por todo lado frigem ao sol cascas de caranguejos. Junto ao velho fogão cozinha-se peixe, metades de navalheira e batatas-doces. Há um cheiro a caldeirada e a hortelã.
- Achas que o Amir ficará bom? Alberto sempre conhecera o Amir naquele passo de subir e descer.
- Ele acha, é o que importa.
Ghirlandaio põe-se a cantarolar um mascavado amore mio, io ti darò di più…
O canário rebenta num trinado.
Compostagem II
O Sr. T. tinha uma arca onde guardava os problemas para que não conseguia divisar solução satisfatória. Uma vez na arca, os problemas mais recentes, como as camisolas dobradas, pesavam sobre os problemas mais antigos, arrumando-os mais para o fundo. É verdade que por vezes o Sr. T. tinha um problema que, fosse qual fosse a posição a que o pretendesse acomodar, simplesmente não comensurava com a arca. Não é menos verdade que com os anos o Sr. T. rendera-se à necessidade de se munir de mais uma arca, onde passara a guardar os problemas de carácter prático, separando os que lhe apareciam como de maior complexidade, inclusive em termos de uma adequada formulação, que se mantinham na primeira arca. Sobre as duas arcas uma mesma lei grave assegurava a bondade da solução.
Ao contrário do que acontecia com outros, o Sr. T. tinha para ele que quanto mais fundo, melhor se realizava a função de um problema, e era recorrendo a simples metáforas hortícolas que o Sr. T. respondia a quem lhe saísse a caminho. Por exemplo: 'Quanto mais fundo, mais anóxico o ambiente, menor o problema.' 'O que se decompõe não pode constituir problema'. ' Não é qualquer estação que revolve os mantos'. ' A quantidade de turfa faz a qualidade dos solos' e coisas assim.
Ora, sendo qualquer vida um conjunto de acções aproximando a desorganização irreversível, os problemas acumulavam-se como o pó e, periodicamente, o Sr. T. tratava de escavar o jardim em dois sítios diferentes, logo atulhando cada buraco com o conteúdo de uma arca. Para que os mantos mantivessem alguma integridade, o Sr. T desenhara as arcas com fundos móveis. Uma vez as valas atulhadas, atapetava tudo com um palmo aberto de terra e regava com água abundante. Para o efeito, o Sr. T. rasgara no jardim quatro talhões que delimitara com ardósias e seixos quebrados e moídos pela avidez do musgo. Deste modo, sempre que acautelava os problemas pelos talhões, uma arca por talhão, o Sr. T. enternecia-se na contemplação das mais peculiares soluções que, do cerúleo ao rubro, lhe povoavam os dois outros talhões. Essa visão, por um longo momento, absolvia-o.
Depois, porque muitos e renovados fossem os problemas, o Sr. T. recomeçava a encher as arcas.
sexta-feira
Amor à primeira vista
- Pum!
- Queres dizer? - Não quero dizer. - Não queres dizer? - Não. Dás-me um cigarro? Apalpo os bolsos. – Toma, estico cortesmente o maço. Ela puxa como se puxasse um dedo muito, muito fino. Sorri por debaixo dos olhos negros, depois volta a fazer Pum. O cigarro já na boca, os olhos um pouco já para cima, estende-me vinte cêntimos. Recuso. Faço, espantado, um barulho estranho com a garganta, ela percebe e diz obrigado. Sabe lá ela, penso. Era daquelas mulheres que não te importunaria puxar para fora da rebentação, secar e levar para casa, fodê-la. - Não, filhota, não estás obrigada, é só um cigarro, digo. Ela dá um jeito ao cabelo e volta a fazer Pum. - És bonita Pum, digo. Ela sorri. - És recente aqui em Torres aLx, Pum. - Pum, disse ela aspirando o cigarro como se o usasse para respirar. - Dás-me um cigarro? repetiu. - Amanhã já não terás os vinte cêntimos, Pum. - Daqui a uma semana … não gosto de desperdício, Pum. Ela olhou-me o anel e fez contas de cabeça. – Pum, sorriu Pum erguendo os olhos. Era aloirada, o cabelo ainda lustroso, uns olhos negros enormes e um dedo espetado a dizer Pum. Sem qualquer recuo, a coronha marcara-me. Descemos a rampinha, comprei cervejas no minimercado e deixei-me ficar a observar o discurso dos corpos enquanto ela desaparecia no meio deles. Passados não eram dez minutos, Pum reaparecia, os olhos muito negros e desembaraçados, trazia presentes para a nova casa.
quinta-feira
A razão do cliente
Quando Aldo acordou, naquele dia, sentiu-se apertado a ponto de lhe ser impossível erguer-se da cama. O problema não era conseguir mexer os membros, tudo nele mexia e palpitava como de habitual. Por estranho que pareça, Aldo estava constrangido ao leito, de facto, pela sua própria casa. Era como se a casa tivesse diminuído violentamente durante a noite, ou tivesse ele, durante o sono, crescido mais do que é humanamente comum. Foi com esforço que conseguiu levar a orelha ao auricular e digitar o número.
- OmniCom, em que podemos servi-lo?
- … e o Sr. Aldo, com certeza, fechou os contractos de transposição e solidificação…
- Como se lembrará, o nosso contrato só nos impõe a colocação, a casa está onde e como nos pediu?
- Felizmente, o seu caso está contemplado na nossa lista de dúvidas do cliente, Sr. Aldo. Se o Sr. Aldo fizer o favor de desligar e voltar a ligar-nos pelo 211 212 213 pode não só regularizar a sua situação de uma forma personalizada como expor seu problema para que possa ser prontamente resolvido... Do outro lado, uma voz maviosa que já não ouvia.
- ... as nossas casas têm sempre a dimensão da razão do cliente! Tenha uma boa tarde.
Desmoronado, Aldo ligou de novo.
- Maria Manuel?
Sobretudo em Torres aLx
- Não olhes agora, murmuraram-lhe.
Todo o seu instinto inclinava o desabe, foi coisa de segundos. Talvez houvesse um revólver, fosse ele um ponto na linha de tiro que porventura começaria atrás de uma sebe, do lado oculto de uma esquina. Talvez. Mas tudo era apoucado naquela decisão da vontade, repugnante ao instinto. Não olhou. Faria de conta que nada lhe fora dito. Logo, logo, conheceria a impossibilidade de perigo imediato, caso em que pedirem-lhe para não olhar seria apenas despropositado. Mas isso seria depois.
Então, coisa de segundos, apenas o rodar quase dos ombros e do pescoço, quase, quase o virar dos olhos, depois, a acalmia súbita, os músculos tendidos, firmemente travados, a ideia de perigo enfrentado, dominado, tornando tão mais pungente a vitória. Era deliberadamente que o Três Dedos submergia naquele pequeno triunfo da vontade, não olharia, que mais lhe poderia dizer o mundo, acaso mais importante?
Teve a certeza de que a haver revólver, o tiro falharia a linha.
Depois, o Três Dedos sabia que a vida exige o tiro, sobretudo em Torres aLx.
domingo
Valdemar
Quando Valdemar percebeu que não era um réptil, era tarde demais. O réptil era já todo o seu sistema linfático. Não havia como fugir. Os seus linfóides, linfonodos, ductos e tecidos linfáticos em geral haviam deixado de funcionar do modo a que se habituara. O seu sistema imunológico, tacteava, não era o mesmo. Os seus resguardos e atracções moviam-se numa estranha passadeira rolante na qual, mero expectante, não havia qualquer controle.
E no entanto, Valdemar percebera que não era um réptil. E ao assim aperceber-se fazia um raciocínio simples: se não era um réptil, mesmo quando era a imagem de um que o espelho lhe devolvia, outros como ele não teriam de ser exactamente répteis, ainda se permaneciam répteis no seu mutismo especular, como ele mesmo persistia. Quantos seremos, como reconhecermo-nos e outras tantas questões seriam a consequência e uma teoria do método.
Porém, olhando de novo o espelho onde um enorme crocodilo se espalhava sem cerimónias, Valdemar já não pergunta.
- Isto é esperança, e ter esperança é enganar-se duas vezes, diz Valdemar. E virando costas ao espelho trata de colocar o chapéu, franquear a porta e dirigir-se lenta e reptilianamente para o trabalho.
sexta-feira
Superman Big Sister ou O Sr. T. faz o seu passeio
O Sr. T. caminha lenta e solitariamente junto ao mar. Longe dele reparar em outros solitários como ele, ali junto ao mar. Mas não pode deixar de notar um homem que caminha na sua direcção, uma capa vermelha presa abaixo do pescoço. É uma questão de tempo até o homem passar por ele e prosseguir num passo esforçado de Super-herói, afundando-se naquele estranho outro sentido, diferente do seu.
O Sr. T. acompanha ainda a sua marcha difícil, mais por ouvido. Nunca saberemos quem é, e o que faz este homem, não interessa realmente. É mais um passo pesado, deligente, demasiado aplicado ao caminho, pesa o Sr. T. na sua pequena balança. O Sr. T. colecciona apenas os passos leves e curtos, passos de quem perde os olhos pelos caminhos - como quem colecciona cotos de lápis de várias cores, já sem préstimo algum.
quinta-feira
No fim
De há uns tempos para cá, não conseguia distinguir o chegar a casa da ida ao teatro, onde, esperava-se, a mesma peça desenrolar-se-ia e faria semanas. Maria fazia semanas e ele não era um dos entusiastas, para ser sincero, estava farto. Nenhuma daquelas proposições era nova; com variações, o diálogo repetia-se frequentemente de há uns anos para cá. Ele era capaz de prevê-lo ao pormenor, não apenas quem iria começá-lo, mas quando, em que tom se iniciaria e quem seria o primeiro a abandoná-lo. Na realidade, não era difícil. Se alguma coisa ele sabia, era quem sempre abandonava primeiro a conversa.
De nada lhe adiantava berrar, bater com a porta, sair de casa – era como se todo o ridículo da situação se abatesse sobre si. Não era a atitude a tomar – tinha dois filhos a vê-la berrar, bater com a porta, a sair de casa, e eles, debaixo dos braços, a ir com ela, a voltar com ela, circenses como modo de estar. Podia não o fazer, podia fazê-lo raramente – evitar o hábito a todo o custo. Ou então sair - sair de uma vez, um Verão, um Outono. Tomar as medidas grandes.
Que podia ele fazer? Reconhecia em Maria a capacidade de intumescer plateias. Por diversas vezes o que se perdia naqueles espectáculos pouco menos do que privados, assaltara-o. Em regra, a suinidade assistente era ele. Talvez por isso aquela vontade dos lugares públicos. Chegou a imaginar um restaurante afamado a aplaudi-la de pé, ela a agradecer, vénia para um lado, depois vénia para o outro e, entre uma e a outra…
- Porque é que não discutes comigo? Porque não tens argumentos, não tens argumentos e é tudo. Era tudo. Abater que argumentos? Onde estava o adversário? Ela sabia tão bem como ele que o que lhes estava a acontecer não era do domínio da lógica.
- De que estás à espera para mostrar que és homem? Ele? Porquê e em que sentido mostrá-lo? Sempre ouvira tudo o que ela tinha para dizer, já conhecia todas as acusações e as imprecações que traziam pela mão. Estava farto, mas ia exasperar-se por que carga de água, se até aí o não fizera? Levantou-se. Também ela caíra na mesma ratoeira que ele. Também ela se enamorara, também ela se casou do mesmo casamento. Também ela se cansa.
Era melhor para todos que ela não fosse tão fraca e tão forte como se mostrava? - Fazes-me falta no dia a dia, dizia. - Onde estás tu quando faço o que a minha mãe fazia? - Porque não falas comigo?
Ele olhou-a com um ar aborrecido, voltou-se, abriu a porta da casa de banho e cerrou-a devagar atrás dele. Por um momento, ainda a ouviu, como se o vozear abatesse contra as paredes, deslizasse por elas abaixo e se infiltrasse pelo soalho. Fixou os olhos no roupão dela, na escova de cabelo, na caixa das lentes; caiu-lhe uma lágrima. Onde ocorrera o erro fatídico? Amanhã saberia do apartamento. Quando tudo estivesse concluído iria deixá-la representar uma última vez.
terça-feira
O facto é que eu...
Saio no salto mesmo da janela e atiro a arma para o chão (um relvado pontilhado de azáleas e rodeado de muretos de hidrângea, algumas árvores, um lajeado em serpentina), as mãos bem espetadas, os dedos abertos (estou a entregar-me, levanto bem os dedos, não disparem), pronto a saltar (talvez metro e meio, um pouco mais, não sei, a janela era térrea, abri os braços). Acho que é neste momento que sinto o cowboy (nunca tive tantos olhos voltados para mim, todos à espera de um deslize). É quando ela salta no ar a dardejar a morte (acidente, diria depois o arquivo, estupidez, sim, mas eu tinha de largar a arma…). Uma bala vara-me o peito. Depois, explode algo na minha cabeça.
Como as fotografias desapareceram dos arquivos da polícia, não sei (mas posso dizer generalidades sobre corrupção e interesses). Anos depois, apareço na televisão, rosto aberto, horário nobre. Sim, é o meu rosto a preto e branco (sim, parecia eu, mas não era eu, não podia ser). Em letras vistosas, o spot intima: proteja os seus filhos! Não me reconheço de imediato e, quando isso acontece, Eu não era aquele resto (pode ser mania minha, dada a minha situação, mas acho que os mortos merecem o nosso respeito, aquilo fora eu, não era mais). Mas, desse por onde desse, é a captação objectiva do meu rosto (sim, há que confirmar, o desfigurado era eu; ocorre que eu não estava ali como um qualquer filho de uma mãe, a minha inocência não é chamada para aqui, o facto é que eu …).
Anos mais tarde, reapareço nas estações de Metro (tudo acaba por aparecer no Metro, é sabido, eu ainda não sabia, mas ia saber; o primeiro, estava longe de vê-lo, observava eu um japona a tocar Paganini, o gorro no chão para as moedas, e reflectia sobre as disparidades entre culturas, quando ele se desvia num molto impetuoso, e se me depara, não podia acreditar, um espelho de feira; sim era o meu rosto, outra vez). Desta, em placards gigantescos, também a preto e branco, onde agora se lê, a vermelhão, Não resista... este resistiu (era mentira, acabei de vos contar como tudo se passou; eu entregava-me, mas começava a habituar-me a ver-me difamado, a minha cara ultrajada). De calafrio na espinha em hora nobre passo a arrepio das horas sombrias (torno-me uma sombra, uma espécie de pesadelo de passageiros a desoras). É coisa de dois anos, se tanto (sim, foi o que ainda durou a minha morte), depois esquecem-me pura e simplesmente (podem não me acreditar, mas agora eu sei o que é a paz).
quarta-feira
A mais longa das histórias contada em poucas palavras
terça-feira
Apresentação
Tita Dias pediu um Bushmills, depois outro e puxou de um cigarro. O balcão era uma bolha negra e meia dúzia de luzes frias cuspiam as bebidas. Tinha a cara gelada, luvas e um longo sobretudo que tratava de desabotoar quando cruzou o seu olhar com o dela, ainda do outro lado, entre o vidro e a noite fresca do exterior. As T-shirt pretas dos rapazes tremeluziam na luz e uma lista azulada pintou-lhe na cara um esgar sonolento e sinistro. Ela deu-lhe um beijo, os lábios ainda frios, e afastou-se em direcção à sala interior. 'Vens?'. Devia ter recusado aquele trabalho, mas já era tarde para isso. Descascou o cigarro e dirigiu-se também ele para a mesa grande. A sala estava quente e havia gente a pé.
Ela convidou-o a sentar-se; o gajo no meio, ela de um lado, ele do outro, alguns exemplares do livro e os três microfones; não poderia fumar, avisaram-no. Tirou as luvas e deu um gole enquanto os olhos pousavam no título, 'Todos os paraísos são artificiais', depois ergueu nervosamente os olhos para a assistência iluminada pelo borbulhar dos clarões. Era um bom título verdadeiramente perdido num mau livro, o gajo definitivamente não era ... Ela ripostava, 'nem tu Tita'. Ele sorria com um gato pela boca.
A seu lado, uma árvore tropical em polyester, que de dia seria terrível, mergulhava-o apenas mais na sombra, à sua frente posters de cinema americano, do outro lado uma dezena de ecrãs sobre fundo vermelho a fuzilar filmes com Edward G. Robinson. O gajo já lá estava, sentado, um ar repousado, os ombros quase tombando nas mãos aninhadas no colo. Sorriu vagamente e disse qualquer coisa simpática. Ela fez-lhe sinal e soletrou um 'sabes o que vais dizer?' com os lábios. Ele não respondeu.
Era a ela quem cabia começar. No fim falaria o gajo do livro. Para ele ficariam os dez minutos no meio. Um foco explodiu-lhes na cara e ouviu a voz dela dar as boas noites. As janelas ressoavam batidas pelos ecrãs. Passados alguns minutos, novo sinal e o seu nome ampliado pelo microfone. No circo, o momento dos grandes felinos é no fim, quando a plateia está demasiado exausta para os palhaços. A ele cabia-lhe ser o último palhaço, actuaria enquanto montavam os gradeamentos - depois, o gadjo sociologicus.
- 'Todos os paraísos são artificiais é um bom título' - procurou um cigarro no bolso do sobretudo e rasgou a ponta. Esticou o tabaco no papel e começou com o isqueiro a aquecer a pedra que pousava na ponta com o filtro. Enrolou, levou-o à boca e estalou o isqueiro. Definitivamente, era um bom título. Entretanto, ganhava alguns segundos e um silêncio de pedra. Quando recomeçou a falar a desordem dos sons reiniciava e um forte odor metálico enchia a sala. Tinha todos os olhos e rapidamente também os ouvidos. - 'Desde a origem, podemos imaginá-lo, o artifício tornou-se o paradisíaco'. - ' Um pacemaker, um conto-de-fadas, o soma, a máquina...' - largou uma nuvem de fumo espesso e passou-lho pela frente do gajo como se ele não existisse. Ela apagou-o no copo com uma expressão ofendida de austera censura.
Tita Dias continuava, claramente de improviso. – ‘ Já no paraíso se procura o artificio de um outro paraíso, é isso mesmo que nos é dito, salvo erro, cito de memória, em Génesis, 3:6, e é com ele que termino: "E, vendo a mulher que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento, tomou do seu fruto, e comeu, e deu também ao homem, e ele comeu com ela." Fez-se silêncio, Tita Dias esvaziou o copo de um trago, pousou-o e, semicerrando os olhos como se procurasse divisar rostos do outro lado das luzes, concluiu: -'Porque é que a artificialidade está já no Primeiro paraíso? Porque a artificialidade é o homem, senhores. E ao homem não se escapa'.
Quando Tita Dias terminou, o silêncio denso adiantou-se-lhe alguns segundos, depois algumas palmas dispersas estalaram pela sala.
O trabalho estava feito. Foi só esperar que o gajo fizesse os agradecimentos da praxe. No fim decorreria a sessão de autógrafos. Depois, novamente o frio da noite, os gatos. Entretanto, aquela gente acotovelava-se oferecendo o lombo do livro à mão diligente do gajo que não era o…; certamente nunca um dos condenados da cidade.
- Porque fizeste aquilo? - perguntou ela.
- Referes-te... queres um café?
- Sabes ao que me refiro e, não, não quero café. Tita beijou-lhe a testa. - Já tenho idade e não tenho nome a defender, Eva. O gajo era um idiota, não sabem do que falam estes gajos, teve publicidade extra, que mais queres? Vais vender mais livros, Eva. E ninguém virá atrás de mim.
- "E, vendo a mulher que aquela árvore era boa para se comer…". Diz lá que não foi um gran finale, Eva.
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