domingo

Nada de especial


Não estão a ver, mas a estrada vem a descer, passa por ali, quarenta metros abaixo é plana, depois sobe, íngreme, depois, sei lá, talvez uns cem metros, vira à direita e desaparece de novo no monte. Ela costuma sentar-se àquela mesa a ler, quando faz sol. Não passam muitos carros. Jipes, nem por isso; às vezes lá surge algum todo-o-terreno. Mas nunca vira um deles fazer o que este fez. Viu-o passar, um jipe branco, descer, depois subir e parar. A seguir, fez uma coisa estranha. Ficou ali, uns dez minutos, no meio da estrada. Ela fica a olhar para o jipe. A certa altura, o jipe arrancou e guinou para a esquerda e aos solavancos começou lentamente a subir o monte. Nunca tinha visto ninguém fazer aquilo, era manifesto mau senso. Mesmo com o terreno coberto de urze, dava para perceber a irregularidade, as rochas, as fendas no terreno. Mas, o jipe lá ia. Aos solavancos, calcando a urze.
Não sabe o que o fez inclinar para a direita. Virou lentamente, quase a não virar, acabou por virar, deslizou um pouco e ficou quieto de rodas para o ar. Não que ela fosse impassível ou indiferente às desgraças alheias, mas não sentira nada de especial. Não sabia porquê, não acreditava que pudesse ter acontecido algo de grave. O motor calou-se. Pouco depois, o condutor saiu pela janela, parecia-lhe aturdido.
Foi lá dentro buscar os óculos, volta até ali e senta-se de novo. Ele olha para o jipe. A seguir, dá um ligeiro abanão no carro. O carro deslizou ligeiramente. Ele baixa-se e espreita para dentro. Por fim, resolve deixar o carro em sossego. Olha para o cimo do monte, olha para baixo, virou-se, olha para ali.
Quando o viu de frente, pareceu-lhe familiar. Esforça-se por descortinar o que é. Quando ele recomeça a andar, tem a certeza. Era o médico da vila. Alto, cabelo branco, bem mais novo do que ela, talvez, cinquenta anos, desengonçado. Sorri. Há uma desapontarora imaturidade na cena. O que lhe teria dado para se meter em semelhante aventura!? Por momentos, vê-o caminhar monte abaixo. Não era fácil, por causa da urze. Encaminha-se para a estrada, desce, passa o plano, começa a subir. Está uma tarde cheia do calor seco que faz zumbir a serra e ele está ensopado em suor quando toca na campainha.
Foi lá dentro; pressiona o botão que abre o portão e volta a sentar-se na cadeira. Ele entra na quinta e subia já pelo empedrado. Quando a meio olhou para cima não a cumprimentou, e também ela não o cumprimentou. Agora, está ali à sua frente, cinco degraus de escada mais abaixo, e parece estar à espera que ela lhe diga qualquer coisa. Está manifesta e paradoxalmente orgulhoso. - Não sei se viu, perguntou. Ela responde-lhe com silêncio. O médico ficou ligeiramente confundido. Todavia, não desiste. - Capotei o jipe, acrescentou. Ela responde do mesmo modo; ficava a olhar-lhe para as frases, à espera, sem conseguir disfarçar alguma diversão. Ele calou-se. Olha para os pés, procurando o chão. - Desculpe, disse, sou médico… - Na vila, eu sei, disse ela. Ele tenta passar ao lado do sorriso. - Se não se importasse, desculpe… a Senhora, gostaria de usar o telefone, é que… Parou ao perceber que a sua atrapalhação a divertia. Ele depunha-se-lhe nas mãos e estava, enfim, verdadeiramente confundido. Ao vê-lo assim, ela tem vontade de brincar um pouco mais. Mas fica apenas a olhá-lo, comprazendo-se com toda a dificuldade que havia em ser espectadora.
Nunca soube o que se passara com o médico. Nem, a esse respeito, o que se passou consigo. Ainda hoje não sabe se o que fez, ou melhor, o que não fez foi acertado; sabe que estava alegre durante toda a representação. O que temos de ser, nada mais, pensou, e por vezes, quando era o que era, não era senão algo misterioso. E alongando as raízes, retorcendo a terra com os chinelos, elevou os seus galhos à luz como se nada se tivesse passado e pegou no livro que repousava na mesa.
Ele acabara por lhe virar as costas resignado e voltava à estrada. Ela ficava, sentada naquela cadeira, o livro nas mãos e o sol a morder no lajedo. Viu-o ainda desaparecer na distância, como se tivesse acabado de lhe atravessar os olhos, depois deixava de o ver.

(F.M.)

sexta-feira

Como anjos e demónios


Todos os Domingos de manhã o Sr. A. faz a marginal do rio com um saco preto à procura de histórias. Por vezes cai-lhe uma na cabeça, mas a maior parte das vezes não é assim tão fácil. De uma vez, estendera ele o braço para deter um papel que ameaçava no vento, e logo três lhe tombaram aos pés, atemorizadas. Eram histórias ainda pequenas, historinhas a quem sua palma, de tão sulcada e aberta, amedrontara mais do que aquela folha de jornal à deriva. Quando assim é, o Sr. A. deixa-as partir, não as quer nem tão pequenas, nem medrosas, mas custa-lhe sempre abrir mão da perfeição de filigrana das pequeninas.

Nos melhores Domingos, o Sr. A. apanha duas ou três histórias, mas esses são Domingos gordos, não raramente o Sr. A. regressa a casa tão aligeirado como saiu, o que lhe é desagradável. Também lhe acontece tropeçar numa história que já leva um escritor pela mão, e lá tem que se desculpar, o que também o aborrece, quase tanto quanto o ar portátil dos sorridentes escritores. No último domingo, acabara ele de caçar uma história corpulenta, quando abriu gulosamente o saco apenas para descobrir que já estava assinada. Como começasse a chover, o Sr. A pôs o saco preto na cabeça, certificou-se de que abotoara o sobretudo e foi para casa sem qualquer história e muito sisudo.

As boas histórias estavam cada vez mais difíceis de aprisionar e alcançá-las requeria cada vez mais astúcia. Talvez por isso, o Sr. A. andasse desalentado.

Naquele domingo, o Sr. A. ficara por casa, mais precisamente pelo jardim. O caçador recolector daria lugar ao agricultor, pensou, e, pazinha na mão, começou a revolver a terra preta enriquecida com composto, perfurando-a depois várias vezes em profundidade e deixando cair as sementes. Porque não tivesse senão seleccionado a melhor semente, não tinha centenas no saco, mas pouco mais de duas dezenas. Guardou meia dúzia para outra altura e fez a água circular lentamente entre as que depositara na terra. Em Novembro teria os primeiros frutos, quando as delicadas flores brancas do piripiri estoirassem em malaguetas verdes, pretas e finalmente vermelho ardente, depois, a partir de Março, uma cornucópia de histórias, do doce ao limão.

Agora, os Domingos de manhã encontram frequentemente o Sr. A. curvado sobre a terra do jardim, tratando de medrar o dia em que ela rebentará em histórias. É claro que, porque nos demais dias trabalhe numa repartição e nem tudo nasça da terra, o Sr. A. passara a fazer a marginal aos Sábados e estava feliz; o sábado não só palpitava inexplorado, como refulgia em histórias. Na verdade, o Sr. A. estava duplamente feliz, nunca, até àquela data, tivera Sábados e Domingos como se tem anjos e demónios.

Pede, meu amor, pede



Foi uma casualidade, continuas a pensar; queres com isto garantir que não houve qualquer premeditação. Apareceu-te, um dia, recomendada por uma amiga próxima e, por um desses automatismos das redes, adicionaste-a aos teus amigos. Sempre gostaras de conhecer gente e mais de metade desses amigos eram, como ela, conhecidos de conhecidos ou conhecidos de conhecidos de conhecidos, na prática, desconhecidos mais ou menos recomendados, já ninguém sabia por quem. Depois, a qualquer momento podias excluí-la, mesmo que então isso nem te passasse pela cabeça. Era mais uma face num livro de faces a que pouco te aplicavas. Era bonita, nisso repararas.
Não sabes quem começou, mesmo se continuas a achar que não foste tu. Talvez um comentário jocoso e depois uma troca de Smiles. A certa altura, noite em que não conversasses com ela não tinha cheiro a noite. Sobre o que se conversava? Sobre as mais variadíssimas coisas que podiam conversar dois completos desconhecidos, na presença apenas de duas fotografias: namoriscavam. Como dois animais apalpavam mutuamente terreno. Primeiro, soubeste que ela era casada, depois que era relações públicas numa renomada instituição cultural da cidade, finalmente, sem que soubesses porquê, percebeste que iria acontecer.
Uma noite, aconteceu. Xânia, como se estivesse escrito em qualquer parte, convidara-te para jantar. Combinaram o dia e a hora e ela confidenciara-te a morada. O marido, ao que supuseste, estaria em viagem de negócios, mas interessava-te pouco.
Três dias depois, pelas oito da noite, chamavas um táxi, davas a morada e deixavas-te surpreender.
À volta tudo era estranho, a ponto de não saberes de que lado estava o mar. Não conhecias aquela zona da cidade. As cidades haviam crescido desmesuradamente e um homem normal de pouco mais de trinta anos dominava no máximo quatro zonas da sua cidade. Aquela onde vivera a meninice, aquela onde agora vivia, eventualmente aquela onde trabalhava e, durante ainda algum tempo, a cidade divertissement, tal como estivera em voga cinco anos atrás, aos seus vinte e poucos anos. Depois dos quarenta, essas zonas tendiam a reduzir-se cada vez mais a duas e, com o tempo, a um lugar indistinto e pouco mais do que vazio. Fosse como fosse, ninguém conhecia toda a cidade. As grandes cidades tinham-se tornado incomportáveis e percorrê-las ameaçava tornar-se um projecto de vida.
Atravessaste a rua e tocaste. Num repente a porta da rua abriu-se com um silvo metálico e tu subias os quatro lanços de escada.
- Álvaro?
A porta do apartamento correu, esventrando a pequena sala de cima e o desnível que anunciava uma segunda horizontalidade, três ou quatro degraus abaixo. Xânia, atrás da porta, sorria. Ouviste Schubert e viste a mesa posta, as chamas dos castiçais a tremeluzir nos pratos e nos garfos.
- Encomendei a comida. Bebes alguma coisa?
- Bebo. Qualquer coisa, mas bebo.


Na última noite em que tinham conversado, ela fizera-se bebida, dissera que tomara dois Xanax e dissera que te faria isto e aquilo e mais aquilo. ‘Eu escolhi-te, fui eu que te escolhi’, disse por fim e tu expediste um duplo Smile. Cada decisão, és tu que a tomas, pensaste.
E ali estavas, os dois frente a frente, ela ainda mais bonita do que na fotografia, tu pouco mais novo e mais receoso e ela estendia-te um Gin com água tónica e tu olhava-la, na tua cabeça ouvindo-a ainda dizer aquelas coisas todas da outra noite. Lembras-te de beber mais Gin e que não jantaram até muito depois da meia-noite, mas não podes precisar como aconteceu.
A certa altura, Xânia sentou-te e começou a dançar e a dança era para ti, exactamente como dissera que faria. Pouco depois levantava a camisola, fazia-a passar sobre os ombros e deixava-a cair, dava uma volta e, ainda de costas para ti, desabotoava o primeiro botão das calças e só então se te virava, uma anca mais subida do que a outra, a mão direita repousando nas calcinhas de algodão, a outra caindo, encostada ao corpo. Estava agora a menos de um metro de ti, e os músculos retesavam espetando a pélvis. Na linha de algodão, à altura dos teus olhos, um pequeno maço acastanhado de notas de cinquenta tombava suavemente para diante.
- Toma. Quanto queres?
- Quanto queres, Álvaro? Quanto queres para me foder bem, querido? Cem, cento e cinquenta a hora? Pede, meu amor, pede.
Xânia fez tudo o que disse e pagou-te. Peça a peça. Pelo meio cearam-se carnes frias, tostas e bebeu-se um vinho branco, depois continuou-se no Gin, havia notas caídas pelo sofá e pela sala.
Quatro horas mais tarde, Xânia deixava-te usar o chuveiro, chamavas um táxi e ela levava-te à porta de baixo. Antes, apanhara uma a uma as notas - um total os seiscentos euros que foras obrigado a aceitar.
Dois dias depois, Xânia apagava-te da sua lista de amigos e nunca mais te cruzarias com ela.
Não te seria difícil voltar a encontrá-la, pensaste, sabias onde trabalhava, sabias onde morava, por maior que fosse a cidade, sabias onde a procurar. Mas honravas o desejo de Xânia, ela sabia, ambos sabiam, que não a procurarias contra a sua vontade. Até àquela tarde, duas semanas depois, em que, sem que soubesses muito bem porquê, resolveste telefonar para o museu.
- Não, ninguém com esse nome trabalha na instituição. Garantiram-te. Nesse momento, percebeste que não tinhas escolha, de nada te valeria enfiares-te num táxi e atravessar meia cidade, nenhuma Xânia te esperaria naquela morada. Xânia desejava desconhecidos, jovens desconhecidos a quem pudesse pagar e era tudo. E tu, tu já não eras um desconhecido.

quinta-feira

O três pastorinhos




- Sr. Joaquim, o senhor tem um cancro em estado adiantado, as metástases...
- O Senhor não gosta das coisas perfeitas - disse o Sr. Joaquim. -Tinha eu a minha casita junto ao ribeiro, as ovelhas, moía o meu pão e deu-me a mulher os três pastorinhos: Lúcia, Jacinta e Francisco. Mas o Senhor não quis que as coisas fossem perfeitas, Dr., e levou-me o Francisquinho ainda ele não tinha três anos.
- Lamento, Sr. Joaquim.
- Perfeito só o Senhor. Em sendo de outra maneira quem mais Lhe lembraria a perfeição? O meu Francisquinho foi por ajuda ao Senhor que ama acima de tudo os pequeninos e, em morrendo, os quer junto a si. Quando as minhas casarem...
- Gostava de as casar, Dr., mas não terei tempo, pois não?
- …
- ... assim tenha o Senhor presteza para um velho e será sem maior pena.
- Quis Deus que à minha Lúcia já lhe arrastem o pé, é boa rés o rapaz. O pai tem um café na vila e um antepassado andou por estes montes, era miguelista e comeu deste pão; um outro andou com o meu pai a passar republicanos fugidos de Espanha. A Jacinta, queira-a Deus, é pior que as cabras, mas é feita de miolo de pão. Não ficará por aqui, mais cedo ou mais tarde irá para a cidade; como uma borboleta procurará a luz. Não irá ter boa vida, tem demasiado de feitio e coração. A Lúcia sim. Há sempre uma primeira vez para tudo, não é Dr.? A Jacinta irá para longe e esta tosse não quer que eu veja netos. O Francisquinho herdaria o moinho e as leiras, parte das ovelhas; agora será o dote delas. Não é a tosse, pois não Dr., não se morre de tosse.
- A Lúcia tomará conta disto e da mãe, o rapaz não terá nisso prejuízo. O Francisquinho, de qualquer jeito, estaria em terras de França, como os que não morreram, quase todos. Ficará sozinha a mulher, mas é de têmpera, Dr. - ela velará pelo rio e pelo moinho, um rapaz para o pastoreio e para amanho das leiras conversa-se. A Lúcia não vai chorar, sai ao pai. É assim, não é Dr.? Deus saberá porquê e, certamente, velará pela minha Jacinta, para que cumpra o seu destino.
- Sempre verá a mãe nas festividades, não é? Ela sempre virá nas festas, não é?
- Sr. Joaquim...
- O Senhor não gosta das coisas perfeitas, Dr..

quarta-feira

Ovos


João César adorava ovos frescos à luz da manhã.
Pacheco acendia o primeiro cigarro e punha a sinfonia 7 de Beethoven a emergir lentamente do leitor, enquanto fritava os ovos. Levantara-se com as galinhas. Bebera a meia de leite carregada de sempre. O Xanax. Acabara de fritar dois ovos. Agora passava os olhos no ecrã, os jornais, o mail - o ritual matutino. As sensações fortes que electrizavam o mundo, àquela hora, inseriam-no num balão à prova de quotidiano.
Pacheco fuma um finex pelo caminho que faz a pé, tem quarenta e cinco minutos. Bebe as duas primeiras cervejas no café, deste lado da avenida. Entra daqui a menos de trinta minutos. Trabalha do outro lado da avenida, quase em frente ao café. O mundo é belo ou insuportável. Lá para o meio da noite, muitas cervejas e alguns finexes depois, o Pacheco dormirá como um anjo ou como um porco, independentemente do dia.
Um dos ovos cai, estatelando-se no frio do branco da cozinha.
Nessa altura João César desperta. O Pacheco morrera, ainda não tinha quarenta, fazia mais de seis anos.
Ele era o que restava do Pacheco, pensou, um Pacheco vivo e com quarenta e sete anos. Afinal, não há inúmeras variações do tam-tam-tamtam. As cores que usamos são variações de poucos naipes e é estreito o nosso espectro de gosto. A sinfonia nº 7 de Beethoven emergiu lentamente do leitor e ele abriu uma segunda cerveja. Depois ficou a olhar para os ovos.

domingo

Revolução e Exame


Bim virara a folha. Os vigilantes estavam atentos. Bim perguntou-se a que espécie de treino os sujeitariam. Virara a folha e os olhos dos vigilantes viravam-na com ele. Nada mais, nada menos. Nem um pestanejar a alijar qualquer carga, o levar a mão à cana do nariz, debaixo dos óculos, para coçar. Teriam família? pergunta-se Bim e olha de soslaio. Mas já retoma as folhas que virara. Sabe que a qualquer momento podem ler o que escreve, que a condenação definitiva pode a qualquer momento apeá-lo.
Ao toque, tinham soletrado o seu nome completo, o número que o definia administrativamente como individuo, registado qualquer coisa numa folha e indicado o seu lugar. A sua cadeira era a da ponta, junto à janela e à secretária. Esperou. Os examinadores demoraram as instruções. A sala era pequena mas com um amplo pé-direito, as carteiras apertavam-se. Enquanto os examinadores liam as instruções, a sua carteira permaneceu impávida e definitivamente ancorada ao soalho.
Bim voltava às folhas, escrevendo como dele se esperava e a cadeira adaptava-se à sua organicidade tão naturalmente como o faria a casca de um caracol. Os olhos sossegavam na quarta pergunta quando uma pequena multidão irrompeu sala adentro.
Viu-os, mudos por um instante, os olhos percorrendo a sala e logo eclodirem num berro junto, gregoriano. O regime caíra! diziam. Que o regime caíra!, berravam e saltam e cantavam e corriam e voltavam em festa agitada de crianças.
Os vigilantes demoraram-se alguns instantes parados, os olhos postos no examinando; dir-se-ia que nada tinham ouvido. Mas agora era esmagadora a sombra da sala e perna a passo os vigilantes acederam espreitar os corredores, primeiro um, depois o outro, e, como se uma coisa obrigasse a outra, deram-se à liberdade da fuga, não sem que antes pousassem nele os olhos uma última vez como se em despedida formal. Assim que saíram era como se a pele lhes pesasse menos, ninguém diria ‘eis dois vigilantes’, mas, nada mais certo, eis dois fervorosos apoiantes da revolução!


- O regime caiu! Ó homem, o que faz ainda aí? Os examinadores fugiram todos, homem, o regime caiu! - repetiu um dos intrusos, menos impertinente do que boquiaberto. O examinando olhou-o, estranhou a falta de presciência, mas não disse nada. Os vigilantes foram longamente treinados para aparecer e desaparecer e aprenderam com o diabo a piscar o olho, pensou o examinando retomando a escrita. Quando voltarem terei o trabalho adiantado, pensou, há uma certa margem de liberdade em ter o trabalho adiantado.

sexta-feira

Os olhos de Dores


- Que posso eu dizer, meu Deus? Ernesto, no seu traje de prelado, torturava-se frente ao crucifixo batendo repetidamente a cabeça contra o cepo. Quando fora chamado a depor, tinha a fronte vermelha e negra.
- A pergunta é clara, Sr. Doutor Juiz.
- Considera-se inocente ou culpado, a pergunta é clara, condescendeu aborrecido o juiz.
- Inocente, hesitou o réu. Inocente perante Deus. Ernesto não confiava na justiça dos homens, a sua inocência tinha outra origem, mesmo se as provas, entre os homens, pareciam esmagadoras. Sobre Ernesto pendiam as acusações de Abuso Sexual de Menores Dependentes e Actos Sexuais com Adolescentes.
Ouviu todas as acusações como se não lhe dissessem respeito. Só chorou uma lágima furtiva quando, exposta na sua inocência perante um mundo adverso, a sua menina prestou o seu desumano depoimento. Nessa altura tremeu, menos da afronta, do que de amor, e Deus era testemunha do amor de Ernesto.
Que nada daquilo era verdade, uma catadupa de invenções e dislates disse o seu advogado institucional. Todas as supostas provas, garantiu, ou não constituíam prova ou eram simplesmente circunstanciais, nada de sólido havendo contra Ernesto.
Era a sua vez de depor, Ernesto subiu ao palanque, jurou sobre o seu Livro e pousou as mãos no leitoril.
- Não me vou desculpar do que é indesculpável, sou Padre e fiz votos, sou homem e pequei. Tenho cinquenta e sete anos, senhores, estou velho e doente, precocemente velho e doente, e como a noite encosta a manhã, abri-lhe eu a minha cela e o sol quis que cegasse. Agora, pecador, estou cego por amor. Sim, eu amei essa criança, como um pai, como uma mãe, como a Deus, eu amo essa criança.
- Permito-me lembrar-lhe que acabou de se declarar inocente, marcou a acusação.
- Estou inocente.
- Continue, se faz o favor, disse o juiz.
- Nunca me passou pela cabeça. Acabava de sair de uma reclusão a que me submetera voluntariamente quando deparei com ela no jardim. Foi como se um diadema de luz irrompesse e coroasse a obscuridade singela da minha vida. Deus mostrava-se-me no que tinha de mais ingénuo, de mais fundamental. Era a filha de uma jardineira auxiliar da Câmara e cheirava ao eclodir das rosas. Comecei a vê-la aos fins de tarde, no jardim fronteiro à Igreja, onde tinha por hábito sentar-me a ler quando ainda havia luz ou simplesmente a olhar para as coisas, a não havendo já. Um dia, Dores sentou-se a meu lado interrompendo-me a leitura e perguntou-me o que fazia um Padre. Disse-lhe, lembro-me perfeitamente, que fazia de Pai e Mãe dos que os não tinham, como Deus o era de todos nós, que Deus era amor ilimitado da sua criação. Quis Deus, perdoe-se-me mais uma vez a expressão, que a mãe da menina bebesse bastante e ela se me fosse aconselhar mais do que uma vez. Recebia-a na Sacristia, onde podíamos estar a sós e falar prolongadamente, nenhum de nós tinha pressa. Confesso, gosto de crianças, amo-as como uma mãe ama as suas crias, como o irmão mais novo idolatra o brilho das irmãs. A Dores era uma quase mulher nos seus catorze anos, mas era o quase que me encantava, sobretudo o modo como me punha questões, a unha do anelar invariavelmente espetada entre os incisivos.
- Lembro-me do dia em que recebi a visita da senhora sua mãe. Como começou por se lamentar da sua condição económica e como rapidamente avançou para a minha suposta obrigação de pastor. Reconhecia eu ou não dotes especiais na sua filha e, se os reconhecia, quem se não eu poderia fazer com que vingassem? Ela a pensar numa pensão que lhe sustentasse o vício, eu a escrever para várias escolas sacerdotais, a pedir informações e inquirir a possibilidade da sua colocação, dados os escassos meios económicos e má influência familiar e a propor-lhe guarida. A miúda ficaria a viver sob a minha alçada, passaria a ser o seu tutor e encarregado de educação e, em troca, ela tratar-me-ia da casa e como tal receberia um pequeno salário que dividiria com a mãe como muito bem entre elas ficasse ajustado. Foi quanto bastou àquela megera para me vender a sua filha, meio prato de lentilhas. Não amasse eu tanto a pobre filha da bêbada, logo dali a teria escorraçado, como Jesus aos bufarinheiros no Templo.
- Permito-me recordar o réu de que não é da infância mais ou menos infeliz da vítima que aqui se pretende ajuizar.
- Meritíssimo! Sou inocente perante Deus, mesmo se aparentemente não perante os meus semelhantes. Antes do mais, é um juízo de carácter que me está a ser feito. Apenas por isso, Sr. Dr. Juiz, o ter de me alongar mais do que eu próprio desejaria. Pequei, admiti-o, fiz votos que quebrei; do que aqui sou acusado estou em absoluto inocente. Perante Deus omnipotente, Ele sabe-o, vez alguma, ousei depor-me ao serviço do amor idolatra que é o amor dos homens em desfavor da vontade de Deus. Todas as criaturas são criaturas de Deus e a Ele pertencem. Todas elas, simples criaturas entre as quais não difere humanamente, mas, a verdade seja dita, eu diferi. Sim, sou demasiado humano para o meu Deus, mas não pequei a este respeito e não estou menos inocente perante os meus semelhantes. O meu único pecado, senhores, foi um amor tão próximo ao de Deus que sucumbi, encadeado, a esse simulacro arrebatador - que ainda sucumbo. Eu amo-a, Sr. Dr. Juiz, a Dores é a minha menina. É-me indiferente o que a Lei dos homens de mim poderá fazer, mas não seria fiel ao meu Deus se não me defendesse do que a Ele acusa. Porque Deus é amor e eu amei. Amei a pedra no sapato e o bicho esquivo, a vida e a morte e a Dores e, acima e por dentro, o vulcão que é o amor de Deus insinuou-se entre nós como uma graça.
- Dores era ainda uma miúda quando a recolhi. Como disse, acolhi-a como empregada, mas era demasiado miúda, tive que lhe ensinar tudo, ao que ela invariavelmente juntava os joelhos e sorria, abrindo uma covinha do lado direito da boca. Tinha os olhos muito pretos e eu disse-lhe que eram amoras doces e que os frutos doces atraíam os animais. Eduquei-a no carácter e na mente educaram-na as melhores escolas, orgulhava-me dela, bonita e brilhante. Até que entrou na Faculdade.
- Sentia-me só e nem Deus era capaz de me acudir. Dormia mal, tinha começado a fumar e passava noites inteiras em branco à volta de um maço e de uma chávena de chá.
Um dia veio dizer-me que namorava e pedir-me que a bendissesse. Assim fiz. Não chegou a acabar a faculdade e eu não dormi dias a fio, tinha pesadelos como um pai. Visitei-a quase que semanalmente desde que casou, tem três filhos lindos que me chamavam avô Padre e que faziam com que as lágrimas me aflorassem os olhos. O mais velho é lourinho, os olhos muito azuis e rabino e inteligente como a mãe. Quis o pai julgá-lo antes de Deus e declarar alto e bom som que não era pasto de bastardos e que era eu o progenitor do Americano, como lhe chamava. Perdi a Dores, nunca mais me foi permitido ver os miúdos. Soube depois que o Francisco fora viver com um tio que partira para a América. Se senti saudades da Dores? Oh, meu Deus, como as senti. Eu amava-a como uma mãe ama os seus filhos, seguia-a como um pai e, benza-me Deus no seu eterno amor, queria-a como mulher, nunca deixara de a querer, mesmo quando a abençoava. Entretanto eu mudara de paróquia, mas por uma bizarra ironia o ciúme do marido reaproximava-nos e vi-me a contar-lhe de novo histórias para adormecer.
- É verdade que a beijei e que dormiu na minha cama em total comunhão, mas acaso a desflorei ou, pior, a violentei? Não. Nunca sobre ela exerci qualquer poder físico ou outro e nem uma só vez a maltratei, mesmo se apenas em pensamentos e omissões. Beijei-a como o pai e como a mãe que dela fui e, nos melhores momentos, brincamos como irmãos. Quando não era o seu igual nessas brincadeiras, era o seu tutor e o seu colo. E foi ainda a uma imaculada imagem que cheguei a recostar-me. A quem cheguei humildemente a beijar os pequenos seios, perfeitamente enamorado, como se fosse importante que houvesse uma última vez em que seriam beijados sem gula. Amamo-nos e fomos felizes, apraz-me pensar. Dei-lhe tudo e nada exigi. Que posso dizer sendo fiel ao meu coração e à minha crença? Antes de tudo o mais, que a amei, meu Deus como a amei!, depois que a amei à medida do meu amor por Maria, Mãe de Deus, que fui pai, mãe e irmão da Dores, que o seu bem-estar e felicidade eram os meus maiores e mais contínuos pesadelos e que chorei quando abalou, mesmo se era eu quem a ajudava a partir desejando a sua vontade como a minha fora.
Até que Dores desapareceu. Constou que se diluíra na cidade, junto ao delta do grande rio, perdida numa vida em que os papéis são tanto mais ingratos quanto mais intensos foram os nossos sonhos. Não sei, nunca mais a vi e os anos passaram amargos. Posso imaginar que não tenha sido muito diferente para ela. Mas, ao vê-la sentada junto à acusação, não posso dizer que a compreenda.
- O réu… preparava-se para dizer a acusação.
- O réu... levantou-se a defesa.
- Atenha-se aos factos, se faz o favor, retorquiu o juiz.
- Sr. Dr. Juiz, eu amo-a, hoje como então, valha-me Deus. Não se julga o amor que Deus nos dá. Perante o amor não há factos.

No seu lugar junto à acusação, os olhos de Dores incharam de lágrimas que se apressou a chupar com o lenço. A seguir, retocou a maquilhagem, endireitou-se como se nada fora e os seus olhos brilharam contra os dele.

quarta-feira

Raridades


Mais cedo do que tarde a onda regressa ao oceano. Capacita-te de que são raros os que a apanham de feição e, muito raros, os que a tendo de feição sabem dela fruir.