Não estão a ver, mas a estrada vem a descer, passa por ali, quarenta metros abaixo é plana, depois sobe, íngreme, depois, sei lá, talvez uns cem metros, vira à direita e desaparece de novo no monte. Ela costuma sentar-se àquela mesa a ler, quando faz sol. Não passam muitos carros. Jipes, nem por isso; às vezes lá surge algum todo-o-terreno. Mas nunca vira um deles fazer o que este fez. Viu-o passar, um jipe branco, descer, depois subir e parar. A seguir, fez uma coisa estranha. Ficou ali, uns dez minutos, no meio da estrada. Ela fica a olhar para o jipe. A certa altura, o jipe arrancou e guinou para a esquerda e aos solavancos começou lentamente a subir o monte. Nunca tinha visto ninguém fazer aquilo, era manifesto mau senso. Mesmo com o terreno coberto de urze, dava para perceber a irregularidade, as rochas, as fendas no terreno. Mas, o jipe lá ia. Aos solavancos, calcando a urze.
Não sabe o que o fez inclinar para a direita. Virou lentamente, quase a não virar, acabou por virar, deslizou um pouco e ficou quieto de rodas para o ar. Não que ela fosse impassível ou indiferente às desgraças alheias, mas não sentira nada de especial. Não sabia porquê, não acreditava que pudesse ter acontecido algo de grave. O motor calou-se. Pouco depois, o condutor saiu pela janela, parecia-lhe aturdido.
Foi lá dentro buscar os óculos, volta até ali e senta-se de novo. Ele olha para o jipe. A seguir, dá um ligeiro abanão no carro. O carro deslizou ligeiramente. Ele baixa-se e espreita para dentro. Por fim, resolve deixar o carro em sossego. Olha para o cimo do monte, olha para baixo, virou-se, olha para ali.
Quando o viu de frente, pareceu-lhe familiar. Esforça-se por descortinar o que é. Quando ele recomeça a andar, tem a certeza. Era o médico da vila. Alto, cabelo branco, bem mais novo do que ela, talvez, cinquenta anos, desengonçado. Sorri. Há uma desapontarora imaturidade na cena. O que lhe teria dado para se meter em semelhante aventura!? Por momentos, vê-o caminhar monte abaixo. Não era fácil, por causa da urze. Encaminha-se para a estrada, desce, passa o plano, começa a subir. Está uma tarde cheia do calor seco que faz zumbir a serra e ele está ensopado em suor quando toca na campainha.
Foi lá dentro; pressiona o botão que abre o portão e volta a sentar-se na cadeira. Ele entra na quinta e subia já pelo empedrado. Quando a meio olhou para cima não a cumprimentou, e também ela não o cumprimentou. Agora, está ali à sua frente, cinco degraus de escada mais abaixo, e parece estar à espera que ela lhe diga qualquer coisa. Está manifesta e paradoxalmente orgulhoso. - Não sei se viu, perguntou. Ela responde-lhe com silêncio. O médico ficou ligeiramente confundido. Todavia, não desiste. - Capotei o jipe, acrescentou. Ela responde do mesmo modo; ficava a olhar-lhe para as frases, à espera, sem conseguir disfarçar alguma diversão. Ele calou-se. Olha para os pés, procurando o chão. - Desculpe, disse, sou médico… - Na vila, eu sei, disse ela. Ele tenta passar ao lado do sorriso. - Se não se importasse, desculpe… a Senhora, gostaria de usar o telefone, é que… Parou ao perceber que a sua atrapalhação a divertia. Ele depunha-se-lhe nas mãos e estava, enfim, verdadeiramente confundido. Ao vê-lo assim, ela tem vontade de brincar um pouco mais. Mas fica apenas a olhá-lo, comprazendo-se com toda a dificuldade que havia em ser espectadora.
Nunca soube o que se passara com o médico. Nem, a esse respeito, o que se passou consigo. Ainda hoje não sabe se o que fez, ou melhor, o que não fez foi acertado; sabe que estava alegre durante toda a representação. O que temos de ser, nada mais, pensou, e por vezes, quando era o que era, não era senão algo misterioso. E alongando as raízes, retorcendo a terra com os chinelos, elevou os seus galhos à luz como se nada se tivesse passado e pegou no livro que repousava na mesa.
Ele acabara por lhe virar as costas resignado e voltava à estrada. Ela ficava, sentada naquela cadeira, o livro nas mãos e o sol a morder no lajedo. Viu-o ainda desaparecer na distância, como se tivesse acabado de lhe atravessar os olhos, depois deixava de o ver.
(F.M.)
Não sabe o que o fez inclinar para a direita. Virou lentamente, quase a não virar, acabou por virar, deslizou um pouco e ficou quieto de rodas para o ar. Não que ela fosse impassível ou indiferente às desgraças alheias, mas não sentira nada de especial. Não sabia porquê, não acreditava que pudesse ter acontecido algo de grave. O motor calou-se. Pouco depois, o condutor saiu pela janela, parecia-lhe aturdido.
Foi lá dentro buscar os óculos, volta até ali e senta-se de novo. Ele olha para o jipe. A seguir, dá um ligeiro abanão no carro. O carro deslizou ligeiramente. Ele baixa-se e espreita para dentro. Por fim, resolve deixar o carro em sossego. Olha para o cimo do monte, olha para baixo, virou-se, olha para ali.
Quando o viu de frente, pareceu-lhe familiar. Esforça-se por descortinar o que é. Quando ele recomeça a andar, tem a certeza. Era o médico da vila. Alto, cabelo branco, bem mais novo do que ela, talvez, cinquenta anos, desengonçado. Sorri. Há uma desapontarora imaturidade na cena. O que lhe teria dado para se meter em semelhante aventura!? Por momentos, vê-o caminhar monte abaixo. Não era fácil, por causa da urze. Encaminha-se para a estrada, desce, passa o plano, começa a subir. Está uma tarde cheia do calor seco que faz zumbir a serra e ele está ensopado em suor quando toca na campainha.
Foi lá dentro; pressiona o botão que abre o portão e volta a sentar-se na cadeira. Ele entra na quinta e subia já pelo empedrado. Quando a meio olhou para cima não a cumprimentou, e também ela não o cumprimentou. Agora, está ali à sua frente, cinco degraus de escada mais abaixo, e parece estar à espera que ela lhe diga qualquer coisa. Está manifesta e paradoxalmente orgulhoso. - Não sei se viu, perguntou. Ela responde-lhe com silêncio. O médico ficou ligeiramente confundido. Todavia, não desiste. - Capotei o jipe, acrescentou. Ela responde do mesmo modo; ficava a olhar-lhe para as frases, à espera, sem conseguir disfarçar alguma diversão. Ele calou-se. Olha para os pés, procurando o chão. - Desculpe, disse, sou médico… - Na vila, eu sei, disse ela. Ele tenta passar ao lado do sorriso. - Se não se importasse, desculpe… a Senhora, gostaria de usar o telefone, é que… Parou ao perceber que a sua atrapalhação a divertia. Ele depunha-se-lhe nas mãos e estava, enfim, verdadeiramente confundido. Ao vê-lo assim, ela tem vontade de brincar um pouco mais. Mas fica apenas a olhá-lo, comprazendo-se com toda a dificuldade que havia em ser espectadora.
Nunca soube o que se passara com o médico. Nem, a esse respeito, o que se passou consigo. Ainda hoje não sabe se o que fez, ou melhor, o que não fez foi acertado; sabe que estava alegre durante toda a representação. O que temos de ser, nada mais, pensou, e por vezes, quando era o que era, não era senão algo misterioso. E alongando as raízes, retorcendo a terra com os chinelos, elevou os seus galhos à luz como se nada se tivesse passado e pegou no livro que repousava na mesa.
Ele acabara por lhe virar as costas resignado e voltava à estrada. Ela ficava, sentada naquela cadeira, o livro nas mãos e o sol a morder no lajedo. Viu-o ainda desaparecer na distância, como se tivesse acabado de lhe atravessar os olhos, depois deixava de o ver.
(F.M.)