domingo

Abel e Caim



Eram onze horas e Abel descera para fumar um cigarro. As pessoas entravam e saíam do edifício, viu uma mulher de casaco comprido entrar num carro e um lugar desimpedir-se mesmo à sua frente. Sorriu. Olhou para o seu carro. Nesse dia, conseguira um lugar perto do trabalho, a escassos duzentos metros, logo antes do cotovelo onde era obrigado a virar à direita e a afastar-se irreversivelmente.
Dali, dada a inclinação da rua, via perfeitamente o carro. O azul-escuro metalizado da dianteira brilhava, ainda não o tinha há um mês. Foi então que reparou no homem reclinado junto ao vidro do condutor e compreendeu que lhe estavam a roubar o carro .
Nesse mesmo dia, Caim escolhera calcorrear aquela zona da cidade, era mecânico, mas estava há três anos sem trabalho e furtava carros que ‘entregava’, um negócio limpinho e sem grande risco.

Antes mesmo de pensar, já Abel largara a gritar e corria desvairado em direcção ao carro. Que o agarrassem, que era ladrão! Surpreendido, Caim ainda hesitou. A seguir, como se nada mais fosse evidente, rasgou na direcção de Abel e agora também ele vociferava e brandia o punho cerrado.
Caim era um homem grande e forte que parecia crescer à medida que se nos aproximava. Aparvalhado, Abel titubeou e sem saber bem porquê, deu consigo abafado pelos berros do indivíduo e a correr em sentido contrário, com ele no seu encalço, cada vez maior, cada vez mais perto.
Ouvindo a gritaria e vendo aquilo, alguns dos circunstantes hesitaram. Nada lhes garantia que o perseguidor fosse o lado certo na corrida. Podia tratar-se de um inocente, quem sabe, um ladrão de comida. Alguns tiveram esta postura, poucos ainda assim. Outros, ainda menos, recordaram precisamente aquele inaugural incidente bíblico e prosseguiram, com uma sensação de Déjà vu. Os restantes rapidamente acudiram e sem que Abel pudesse abrir a boca, era atirado por terra e uma pequena multidão desatava a pontapeá-lo e a apupá-lo.


- Basta, disse Caim enquanto lhe remexia as algibeiras. - Cá estão as chaves e cá está a carteira! - E eras tu quem queria ficar-me com tudo!  - Alguém chamou a polícia?
Pôs-lhe a mão na testa e com o polegar abriu-lhe um olho, reergueu-se, sacudiu-se e com o corpo de Abel por terra entre a multidão de gente que se aglomerara, afastou-se tranquilamente em direcção ao Volvo azul-escuro metalizado enquanto as sirenes começavam a fazer-se ouvir.



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