segunda-feira

A Festa


Encontro
- Queres? Bim virou-se. Os olhos de Sarita Saporta esbugalhavam, bastante bêbados. - Este é o Aziz. Estou a baptizá-lo. Pisou ontem a merda do sonho europeu, é a sua primeira noite no dorso de Europa, a grande vaca. Aziz olhou-o, primeiro a mão e só depois a cara, de baixo para cima. Tinha o cabelo molhado e o ar de quem perdera o oriente muito antes da festa. Ria com o irmão de Sarita e levava os dedos ao cabelo encharcado repuxando-o para trás.
A visão de Sarita Saporta e de Aziz empurrara Bim num outro tempo imenso de há vinte anos em que se ouvia: - Vens de um outro mundo, não será Ali? - Nesse mundo ainda não havia Aziz, mas já Ali. - Não, de Ceuta, retorquia Ali fingindo não perceber e acrescentava: de outro mundo vem vocês, os turistas. Durante as duas semanas em Itália, Ali fora o companheiro e cicerone de dias frívolos começados tarde na manhã. Ensinara-lhe a comer e dormir barato e todos os truques que cuidavam de diminuir montantes. Mostrara-lhe a cidade, dispusera-o nos meios estudantis, abrira-lhe o lado obscuro da noite toscana. Ali pagara-se bem. Para o caso não interessa como lhe ficara com as liras, nem sequer se Bim lhe guardou rancor. Ali vivia de bons parvos e Bim fora um parvo extremamente interessado tanto como, num sentido muito estrito, um parvo duro, extenuante.
Olhou melhor para Aziz. O cabelo revolto, os olhos negros aureolados de vermelho e rápidos como esquilos, bem menos desatentos do que queriam fazer crer - muito mais escuro, nada que menos o aproximasse de Ali do que o tom da pele. Depois a mão de Sarita Saporta a acenar, afirmativa. - O que tens feito? E ele com um sorriso seco: - Caça ao imigrante ilegal. Sarita fuzilou-o com o olhar. - E o que fazes mais, para além de ser delator? Bim sorriu e indicou a tabuleta, acima da porta. - Estou de certo modo ligado à boa gestão das residências universitárias. - E, Senhor Direcção - disse ela passando-lho - posso fumar charros ou vai pôr-me à porta e a ferros o Aziz?
- Está sossegada que não vou fazer nada ao Aziz. E podes fumar todos os que quiseres. Hoje não tenho nada a ver com isto. Vim só ver como estávamos passados vinte anos. - E, Senhor Direcção, como estamos nós?
- Pára de me chamar assim, e que queres que te diga de novo, estamos todos igualmente na merda como antes e durante. O resto tanto faz. - Tanto faz, Bim? - os olhos de Sarita Saporta estavam enormes.
Bim recusou e entregou o charro a Aziz que fez por agradecer com o ar mais idiota deste mundo.
- Já nos vemos.
Sarita Saporta disse-lhe que estava certa de que sim.
Afastara-se em direcção à escada que dava para a cave, seguia a música e já decidira naufragar. As paredes forravam-se de cima a baixo de papel de cenário pintado, escrito, com colagens. Línguas de papel tombavam do tecto como ondulados de um cabelo retido no piso de cima; uns escritos da ponta para o tecto, outros, do tecto para o caracol. Por cima, a bola de espelhos, a luz estroboscópica a bater. Alguma da escrita sobressaía na luz negra e completava frases apenas tão estranhas como os bocados de rosto que assomavam e logo desapareciam, gente que não conseguia sequer saber se conhecia. As poucas cadeiras haviam sido forradas a papel de jornal e, ao fundo, uma porta alta, transformada em casa-forte dos três porquinhos abria só por um quinto, obrigando os circunstantes a dobrarem-se quase em metades no acesso aos jardins e às casas de banho. A portinhola de cartão, ao descer, a todos pospunha um rabicho de porco. Para os mais altos ou que àquilo não se quisessem prestar não restava senão voltar a subir a escada, seguir em direcção à cozinha e descer novamente os degraus de pedra que davam para o jardim e que terminavam no meio de buganvílias cor de laranja iluminadas pelas listas das janelas.
Ali salvara-lhe a vida, pouco tempo depois roubava-o e desaparecia.
Já passara muito tempo, demasiado tempo.


Aproximação
Milão, passa das três da manhã. Bim tenta ainda relembrar, só vê o escuro de uma noite, o bêbado a contorcer-se junto às vespas no descanso e cinco ou seis indivíduos com coisas nas mãos, depois, o que deveria equivaler à perda de sentidos, nada, absolutamente nenhuma memória.
Na cena seguinte Bim está no hospital, alguns pontos em dois sítios e a cabeça ligada. Ali dormita sentado, a seus pés, a cabeça apoiada na cama. Quando percebe que Bim acordou a boca abre-se-lhe num sorriso meridional. Com a mão esguia de tamarindo, aponta Sarita Saporta, no cadeirão de lona. Ela Sorri, com os olhos muito abertos. O seu número de telefone estava perdido na carteira de Bim. E agora os seus olhos grandes sorriam e velavam por ele. Entretanto, Ali encostara-se a um canto com o ar satisfeito e nervoso que sempre tinha e sem o qual - mesmo depois daquele dia - lhe era impossível revê-lo. Do seu canto olhava-os, examinava a emotividade da aproximação distraidamente como se saboreasse a carne sumarenta de uma tâmara.
Sarita Saporta fora professora de literatura, chegara a publicar um livro polémico em que expunha a refutação do Cânone Ocidental do Bloom, parágrafo atrás de parágrafo. Agora tinha uma empresa de distribuição de legumes biológicos e tinha que desligar três telemóveis para poder estar ali. Mas o tempo não lhe fizera marcas que a desfeassem, continuava magra, um ar de miúda, a mesma expressão ferida e os olhos pretos enormes estavam impossivelmente maiores sob o cabelo acobreado e ferozmente desgrenhado que ela atara com um gancho japonês.
Desmond Dekker arrancava com Shanty Town. Os corpos assaltavam por frases como num imenso e ensurdecedor filme mudo. Aziz aproxima-se dele e estende-lhe - demasiado devagar para os olhos - um bilhetinho, diz que é de Sarita.
Sarita Saporta encosta o corrimão junto à improvisada casa de som, copo alto na mão, à altura do candeeiro de mesa cor de rosas. Os olhos viravam-se na sua direcção e os joelhos sorriam com os lábios. Bim abre o papel, amarrota-o sem o ler e põe-no no cinzeiro. Pede gin e água tónica, dois copos altos.
- Não lês os meus recados?
- Para quê, continuas a gostar de gin não continuas? Diz, sou todo ouvidos.
- Nada Bim, perguntava-me se ainda te recordarias de Itália. Lembras-te? 1979, regressavas a Milão, vinhas de Siena, via Florença, tu e o Ali e uma garrafa de Chianti. Tu a entrares no café em frente à esquadra e eles a pedirem papéis, tinha havido algo com as Brigate Rosse, recordas? O Ali não tinha os papéis em ordem e desapareceu. Os teus papéis estavam em perfeita ordem, mas zangaste-te quando quiseram que esvaziasses o cartucho das sandes. Já estavas de mau humor e quando à noite aquilo aconteceu foi porque o causaste, eu sei que não estava lá, mas o Ali contou-me, como decidiste enfrentar o enxame de vespas atraídas pelo vinagre do velho bêbado e como acabaste por cair desamparado e a sangrar da testa - de como te desancaram e perfuraram a fronte com um santo em terracota - e como ele te carregou para longe da escaramuça que desencadearas e subiu os oitocentos metros até ao táxi que vos levaria ao hospital contigo às costas. Ali contou-me tudo...
- Antes ou depois de me ficar com o dinheiro?
- Na altura. Depois disso vi-o tanto como tu, tu sabes. Mas sem ele...
- Eu sei. Era isso que me querias dizer?
- Não. Lembrei-me apenas. Ao ver-te, e de novo ao Aziz, lembrei-me de quando te salvei. De Ali, de como ele te pôde salvar para que te roubasse sem acréscimos na consciência. O teu ar indefeso...
- Tu não fazes nada por acaso.
- Quando fui ter contigo, nessa altura não precisamos de papéis...
- Éramos mais novos, muito mais novos. Eu não tinha brancas e tu não pintavas o cabelo de acaju.
- Envelheces, Bim? Perguntou Sarita Saporta esvaziando o copo. - Isso é bom na tua idade.


Afastamento
Aziz aproximara-se, encostara-se ao canto do balcão e enrolava outro, sempre com Bim ao canto do olho. Bim não conseguiu perceber se o seu cabelo ainda estava molhado ou se já fora molhado de novo. Os olhos percorreram-lhe a cara enquanto Aziz, o semblante opaco e indiferente, se inclinava para a frente e lambia o papel. Sarita Saporta fitava-o. Se os olhos dizem alguma coisa, via-o de novo nesse ano da claridade da Itália de 1979.
- Aparentemente, tens sempre quem tos faça... - Bim puxou um cigarro, inclinou-o no lábio e parou os olhos por um momento na direcção dela. Depois acendeu-o.
- Também sei envelhecer, Bim. E não, não estamos todos igualmente na merda, Sr. Direcção, não da mesma maneira. Não na mesma merda. O Aziz chegou até mim com a minha morada e um pedido de Ali. Ainda tinha a nossa morada, vê lá.
- E ...?
- Um agradecimento, depois destes anos todos. Vinte, mais? - os olhos dela eram enormes. Bim olhou para eles com frieza.
- O homem que Ali salvou em Itália já não existe, Sarita. Tu já não existes, Sarita Saporta, já não és quem pensas que és, além de que ficas ridícula a passear o Aziz. Não venceste, ninguém vence, faz apenas parte do jogo que todos sejam vencidos. Quanto a mim, não sinto senão desprezo pelo homem que me salvou. Não sou obrigado a gostar de um homem só porque me salvou a vida, não há nenhuma razão para ele pensar que possa alguma vez depender de mim. Pela minha parte, não daria um passo para salvar a sua vida.
O lábio superior de Sarita Saporta tremeu ligeiramente, sem expressão.
- Julgava que estava a falar com um miúdo que não podia ver uma data de fedelhos espancar um bêbado só para se divertirem.
- Se não era capaz de ver tapava os olhos. Vejo hoje as coisas com alguma objectividade, Sarita, penses o que pensares. E sei precisamente quem sou. Não pretendo descobrir o que é a vida só quando for tarde de mais. Bebes mais um e mudamos de agulha?
- Estranhos numa peça estranha... - disse Sarita Saporta, enquanto a mão levantou ligeiramente o copo para que Bim o enchesse.
- ... o mais estranhamente possível - concordou Bim, enchendo-lhe o copo.
- Porquê queixar-se se podemos usufruir tranquilamente do que não podemos vencer, não é? É este o teu lema, não é estupor?
- Gosto mais da ideia dos estranhos, mas também podes dizer assim.
- Não é só a tua cara que é a de um velho, Bim, pareces tão desencantado como um.
- Então, é porque deve ser verdade.
Bim ficou a vê-la indiferente, ela continuou a fitá-lo durante alguns segundos, depois deu meia volta, seguida de perto por Aziz. Bim viu-os dirigirem-se lentamente e em diagonal em direcção à escadaria. Ela também não estava mais nova, pensou sem deixar que qualquer traço menos desejado transparecesse e o apontasse.
De qualquer maneira, nunca devia ter vindo. Não fora ele o convidado, mas aquele que morrera há vinte anos e que, por um momento, quase ressuscitara.
Nessa noite não naufragaria.

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