D.ª Efigénia fora duas vezes ao mercado no dia anterior, nada que a apoquentasse, nem o ar frio de Janeiro, nem a forte chuvada a meio da tarde lhe estorvavam a alegria de ir ao mercado. Durante anos, o pequeno Eduardinho fora a sua companhia de sempre. Mas desde a morte da égua, Eduardinho deixara de a acompanhar ao mercado. Na sua ciência, D.ª Efigénia fizera dele um homem a partir da data em que Cigana partira as pernas dianteiras e houvera que lhe abreviar o sofrimento.
- És capaz de o fazer, o pai ainda lhe perguntou, alguém tem que o fazer e a égua é tua. Mas não fora, estava branco como a cera, o lábio inferior tremia-lhe, os punhos cerravam-se-lhe apertados às ancas. Ouviu então a detonação, as patas vergaram-se debaixo dela e tombou de um golpe com uma pancada surda. O pai abatera-a. Um tiro só, na cabeça.
Da segunda vez que teve que regressar ao mercado, já passava bastante das três. Dª. Efigénia nunca fora ao mercado por aquelas horas do meio da tarde. Era outro mercado e não gostou tanto dos pimentos, dos melões, da salsa. Mas havia convidados para o jantar. Dª Efigénia viera das serranias de B., nos limites do distrito, com treze anos, para servir e ser educada na grande casa, naquela altura ainda proeminente e sobranceira à grande cidade. Morta a casa grande com a morte da Senhora, passara para a casa pequena da neta, um andar amplo de dois pisos e cinco quartos, a três quarteirões, onde há alguns anos ainda não havia senão descampados. Os seus usos eram já os usos da casa, a nenhum dos seus gestos faltava o jeito da Senhora, a educação da Senhora, os anos com a Senhora. A mudança para a nova casa pedira ligeiros acertos, coisas pequenas como a faca de cozinha para a fruta que o Senhor preferia se não tinha visitas, a alergia a leite do Eduardinho, o modo de preparar o café.
No dia seguinte - D.ª Efigénia pensou num golpe de frio -, não conseguia mover-se. Era como se lhe houvessem cravado um punhal e a lâmina encravelhada nas costelas lhe tolhesse o tórax, todo o lado direito, músculo a músculo, a dor remoendo implacável. Mesmo respirar era consentir na completa deflagração das costelas. Por volta das catorze e quarenta e cinco, D.ª Efigénia dava entrada no hospital. Um comprimido debaixo da língua, o soro que descia por um tubo da garrafa até ao braço direito, a injecção na nádega do mesmo lado e era recambiada, receitada, para sua casa, desde os seus treze anos, aquela família.
Ainda não eram seis da manhã quando Dª Efigénia dá de novo entrada na urgência do hospital. Depois de esperar quase duas horas pela mudança de turno na Urgência, D.ª Efigénia está agora também constipada e a tosse torna-se aflitiva, as pancadas de dor a lembrar-lhe as menstruações de menina. Quatro horas depois, o Doutor manda-a para casa com a obrigação de não fazer gestos bruscos nem pegar em pesos; trabalho nada, pelo menos durante dez dias e seis a injecções de anti-inflamatório e analgésico.
- A Sr.ª já não é uma rapariguinha, D.ª Efigénia, tem cinquenta e oito anos. Não vai poder continuar como até agora.
Mas antes que se concluíssem os dez dias soube que estava dispensada.
A casa não era grande, mas para além do Eduardo, que já tinha quinze anos, havia três filhos pequenos, o mais novo com três aninhos, carecendo da reconhecida eficiência da D.ª Efigénia, algo incompatível com o seu estado presente.
- É claro que a D.ª Efigénia compreende. O Senhor põe-lhe uma mão sobre o ombro. - Tantos anos ao serviço da família… Retira o braço e estende-lhe a mão. – Não se preocupe D.ª Efigénia, nada lhe faltará.
Eduardinho ficou a olhar para o pai durante algum tempo, depois retirou-se para o quarto tentando afastar um medo que parecia subir-lhe pelo corpo, mas que não conseguia perceber.
É claro que D.ª Efigénia compreendia ou disse que sim, talvez para tornar tudo mais indolor, o que lhe adiantava dizer que não, não percebia, que não podia, que simplesmente não conseguia compreender? Ela, que só falhara dois dias aquando da morte de sua mãe, em quinze anos de serviço, desde que a velha senhora morrera com noventa e dois anos e para ali ela viera, nascia então o Eduardinho, via agora, à medida que o corpo tolhia, desfilar diante de si um impossível carrossel de dias vazios e, de repente, pensava no Eduardinho a enchê-los, como estava grande, como fora ela quase sua mãe; em Setembro ingressaria no Colégio Militar, sentia-se orgulhosa, com um orgulho de mãe.
No dia seguinte comentou-se que ia para casa de uma irmã, que o Senhor não se poupara a despesas e que Efigénia partia com uma aposentação generosa e que partiria amanhã no comboio as onze e cinquenta. Às dez e vinte de Domingo, D.ª Efigénia dirigiu-se com o pequeno baú que compunha toda a sua bagagem e uma malinha de mão para um táxi que acabara de parar do outro lado da rua. O Senhor e a Senhora estavam à porta, ele de fato escuro, ela, a cabeça repousando-lhe no ombro e a mão tamborilando-lhe a cintura, em tons pastel e com a longa écharpe adejando acima dos joelhos.
Um minuto depois, uma carrinha Volvo de cor negra dobrou desabridamente a curva, pareceu perder o controle e, ziguezagueando, subia o passeio, enfaixando D.ª Efigénia contra o azul acinzentado do edifício em frente.
Semiconsciente, D.ª Efigénia ainda viu o condutor aproximar-se muito lentamente, num filme estranhamente mudo e abraça-la.
- Não chores, Efigénia. Não chores.
- Eduardinho…
Pegou na mão dela e apertou-a com força, levou-a aos lábios, e depois ficou a segurá-la. Ficaram assim durante um bocado, uma vez por outra Eduardinho apertava-lhe a mão, até que a mão ficou fria e mole como um peixe morto.
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