sexta-feira

A manifestação


Acorda numa cama de hospital. Tem partes do corpo ligadas, dói-lhe a cabeça, dói-lhe o corpo e não se consegue mover se não muito devagar e com grandes limitações. Não sabe como foi ali parar, não se lembra de nada a partir de certa altura, como se tudo o resto, um vasto terreno obscuro que fora porventura o do piloto automático, recusasse tomar forma consciente. Mexe a mão e acaba por perceber que com jeito pode rodar a cabeça. É nessa altura que compreende que não está sozinho, que há uma outra cama encostada à parede, do outro lado, talvez a menos de quatro metros da sua, e que o indivíduo que está nela deitado não parece dar sinal de si. Tenta erguer-se, mas depressa compreende que não consegue, deixando-se cair. Nesse momento, a porta bate e entram três enfermeiros sem que ele se aperceba até que ouve claramente três vozes. Depois, percebe outros tons de voz e enxerga a sombra de dois polícias. Fica a ouvir a conversa, a ver os procedimentos de rotina.

Houvera confrontos violentos entre manifestantes e a polícia, apercebe-se. Também percebe que tem por vizinho um desses fervorosos manifestantes, agora passivo ao ponto da inconsciência como se lhe tivessem quebrado a vontade como a um galho. A seguir, os polícias inquirem a sua situação. Ouve-os falar de si, mas mais não fica a saber porque dois maqueiros o conduzem para outra sala. Quando atravessa as portas de alumínio ainda olha o manifestante que continua sem dar sinal de vida. No corredor, vê um rapaz com pouco mais de vinte anos que se soergue da maca entre ligaduras e pragueja à passagem de um polícia que tira informações.

- … és tu, Adalberto, diz-me que és tu.
- Sou, Natália, e adivinhando o tom, passa-se alguma coisa?
- Passa-se que devias estar morto, porra. Estás morto, vem nos jornais.
- Estou a precisar de uma boa noite de sono, mas não estou morto. Os jornais, dizes tu?
- Porra, Adalberto, tu morreste. É o que diz a porra dos jornais. Que foste um dos quatro mortos que resultaram dos confrontos de ontem à noite.
- Não sei, não me lembro, mas seja como for estou a atender o telemóvel, o que quer dizer que estou vivo, estamos de acordo?
- ‘ … um dos três mortos, fulano de tal, tradutor entre nós das peças de sicrano e beltrano, faleceu hoje, às seis da madrugada, sendo a última vítima confirmada dos confrontos de ontem à noite.”
- Só me recordo de me pôr a caminho de casa e…
- Também se diz que um dos feridos tinha uma taxa de alcoolemia de 2,99 e que lhe foram encontradas pedras nos bolsos, também estás metido nisto?
- Em quê, Natália?
- Antes de mais, temos que tratar de provar que tu estás vivo.
- … 2,99, isso é bastante. Quer dizer que o gajo do lado… Pois, foi o gajo quem morreu, está mais que visto, claro…
- Quem?
- Nada. Mas, o que é isso de termos que provar a minha saúde?
- Ora, como vais tu viver e comer e ter trabalho, e… se estiveres morto?
- Natália. … como até aqui?

Passados poucos dias recordava quase tudo o que lhe acontecera naquela noite, mesmo se uma pequena mancha persistia. Ia a caminho de casa, passaria das quatro da madrugada e estava bastante bêbado. Atravessara a pé e o mais a direito possível todo o lado oriental da cidade e estaria a escassos oitocentos metros do jardim público e da escadaria íngreme que dava acesso ao edifício, numa cota mais baixa. O semáforo estava verde para os peões, era noite cerrada e não havia carros nas ruas, o que o fizera sorrir antes de cruzar a passadeira numa diagonal talvez imoderada. Nesse momento, lançado, vindo não se sabe de onde, um carro subitamente chiava, os travões a fundo, esquivando-se-lhe por pouco, e prosseguindo, aos solavancos, como se nada fosse. Antes mesmo de magicar, já ele vociferava, tão mais certo de si quanto basto toldado, erguendo o dedo médio e apostrofando a senhora mãe das cavalgaduras com certo nome comum. Poucos metros mais à frente, o carro detinha-se e as quatro portas abriam quase em simultâneo. Escusado será dizer o que não demorou a acontecer e que o deixou quase definitivamente prostrado.
Não sei se sabem o que é um bêbado, mas se sabem, sabem como se reergueu e lambendo as feridas se pôs a caminho, apenas um tanto mais lenta e dificultosamente. Ninguém circulava pelas ruas àquela hora, à excepção dos gajos como ele e dos gajos como os do carro, uma ou outra prostituta ou travesti e, quase de relance, os estranhos seres oriundos do submundo do trabalho nocturno. Recordava-se de ter ouvido um mocho, talvez uma coruja, o que era certamente mais provável. O jardim estendia-se diante dele em socalcos de cinzento macio que pareciam rivalizar com a rectitude da escadaria um pouco mais à frente, como as zonas que lhe deviam doer, mas, pareceu-lhe, não lhe doíam propriamente, e era mais como se não as sentisse. A certa altura, talvez ainda naquele sentimento misto de quem chega a casa e de quem baqueou na luta, falhara o degrau e rolara pelas escadas abaixo, estatelando-se com um baque silencioso no chão de cimento imitando grandes lajes e rodeado de bucho recentemente aparado. A partir daqui a mancha persistia, entretanto acordava no hospital.

Aquele 2,99 g/l era seu - era demasiada coincidência -, mas não percebia as pedras. Ou não lembrava. Um dia, subitamente ocorre-lhe esse gesto de bêbado com que quisera apedrejar o carro muito depois dele ter desaparecido. Talvez então tivesse metido as pedras ao bolso, é possível, num bêbado quase tudo é possível e ele estava bêbado. Acabaria por ter alta, o corpo dorido, a orelha ligada e um braço ao peito.
Não podia adivinhar que o manifestante acabaria por expirar, mas que quem morrera fora o manifestante, até aí ele já tinha chegado. Tinham-se enganado e trocado as identidades, nada de particularmente difícil numa noite como aquela. Agora também sabia que nunca tinha estado na manifestação. E logo lhe surgiu, insistente, outro pensamento, o de que se não tivesse atendido o telefone teria desaparecido para sempre; desfazer-se-ia da sua identidade e refazer-se-ia a seu gosto, sem nada e de certa maneira de novo. Sentiu que tinha perdido uma oportunidade única, mesmo se não sabia o que faria com tão singular possibilidade, sequer se conviria ao seu temperamento. Fosse como fosse, o que tinha ou não de acontecer, acontecera de facto. Ele estava vivo e Natália escrevia carta atrás de carta para os jornais a garantir a sua heróica sobrevivência, mesmo se devia ler-se alcoólica sobrevivência, e apercebia-se que a verdade, política nos termos dela, ou a meia verdade, mais correctamente, pensava ele, não era melhor notícia do que o erro. De um modo demasiado óbvio, diga-se, Natália estava a descobrir que a verdade não era notícia e que ele só voltaria a interessar aos jornais se tivesse ressuscitado, de modo algum estando normalmente vivo como já estava antes de morrer. Dois novos factos se perfilavam com que iria doravante ter que viver: estava vivo e tinha estado na manifestação.
Porque carga de água iria ele, agora, desdizer o coração de Natália? Lembrou-se do miúdo do corredor a berrar para o polícia, os cotovelos endireitando-o na maca. Tinha estado na manifestação, decidiu. Apenas esta mentira fazia jus à saga combatente de Natália. Em certas circunstâncias há que esquecer, noutras há que apagar da memória, simplesmente. Talvez porque a mentira se torne mais verdadeira do que a verdade. Talvez, apenas, porque Natália merecesse que ele tivesse estado na manifestação e essa fosse a verdade em causa.

segunda-feira

A Festa


Encontro
- Queres? Bim virou-se. Os olhos de Sarita Saporta esbugalhavam, bastante bêbados. - Este é o Aziz. Estou a baptizá-lo. Pisou ontem a merda do sonho europeu, é a sua primeira noite no dorso de Europa, a grande vaca. Aziz olhou-o, primeiro a mão e só depois a cara, de baixo para cima. Tinha o cabelo molhado e o ar de quem perdera o oriente muito antes da festa. Ria com o irmão de Sarita e levava os dedos ao cabelo encharcado repuxando-o para trás.
A visão de Sarita Saporta e de Aziz empurrara Bim num outro tempo imenso de há vinte anos em que se ouvia: - Vens de um outro mundo, não será Ali? - Nesse mundo ainda não havia Aziz, mas já Ali. - Não, de Ceuta, retorquia Ali fingindo não perceber e acrescentava: de outro mundo vem vocês, os turistas. Durante as duas semanas em Itália, Ali fora o companheiro e cicerone de dias frívolos começados tarde na manhã. Ensinara-lhe a comer e dormir barato e todos os truques que cuidavam de diminuir montantes. Mostrara-lhe a cidade, dispusera-o nos meios estudantis, abrira-lhe o lado obscuro da noite toscana. Ali pagara-se bem. Para o caso não interessa como lhe ficara com as liras, nem sequer se Bim lhe guardou rancor. Ali vivia de bons parvos e Bim fora um parvo extremamente interessado tanto como, num sentido muito estrito, um parvo duro, extenuante.
Olhou melhor para Aziz. O cabelo revolto, os olhos negros aureolados de vermelho e rápidos como esquilos, bem menos desatentos do que queriam fazer crer - muito mais escuro, nada que menos o aproximasse de Ali do que o tom da pele. Depois a mão de Sarita Saporta a acenar, afirmativa. - O que tens feito? E ele com um sorriso seco: - Caça ao imigrante ilegal. Sarita fuzilou-o com o olhar. - E o que fazes mais, para além de ser delator? Bim sorriu e indicou a tabuleta, acima da porta. - Estou de certo modo ligado à boa gestão das residências universitárias. - E, Senhor Direcção - disse ela passando-lho - posso fumar charros ou vai pôr-me à porta e a ferros o Aziz?
- Está sossegada que não vou fazer nada ao Aziz. E podes fumar todos os que quiseres. Hoje não tenho nada a ver com isto. Vim só ver como estávamos passados vinte anos. - E, Senhor Direcção, como estamos nós?
- Pára de me chamar assim, e que queres que te diga de novo, estamos todos igualmente na merda como antes e durante. O resto tanto faz. - Tanto faz, Bim? - os olhos de Sarita Saporta estavam enormes.
Bim recusou e entregou o charro a Aziz que fez por agradecer com o ar mais idiota deste mundo.
- Já nos vemos.
Sarita Saporta disse-lhe que estava certa de que sim.
Afastara-se em direcção à escada que dava para a cave, seguia a música e já decidira naufragar. As paredes forravam-se de cima a baixo de papel de cenário pintado, escrito, com colagens. Línguas de papel tombavam do tecto como ondulados de um cabelo retido no piso de cima; uns escritos da ponta para o tecto, outros, do tecto para o caracol. Por cima, a bola de espelhos, a luz estroboscópica a bater. Alguma da escrita sobressaía na luz negra e completava frases apenas tão estranhas como os bocados de rosto que assomavam e logo desapareciam, gente que não conseguia sequer saber se conhecia. As poucas cadeiras haviam sido forradas a papel de jornal e, ao fundo, uma porta alta, transformada em casa-forte dos três porquinhos abria só por um quinto, obrigando os circunstantes a dobrarem-se quase em metades no acesso aos jardins e às casas de banho. A portinhola de cartão, ao descer, a todos pospunha um rabicho de porco. Para os mais altos ou que àquilo não se quisessem prestar não restava senão voltar a subir a escada, seguir em direcção à cozinha e descer novamente os degraus de pedra que davam para o jardim e que terminavam no meio de buganvílias cor de laranja iluminadas pelas listas das janelas.
Ali salvara-lhe a vida, pouco tempo depois roubava-o e desaparecia.
Já passara muito tempo, demasiado tempo.


Aproximação
Milão, passa das três da manhã. Bim tenta ainda relembrar, só vê o escuro de uma noite, o bêbado a contorcer-se junto às vespas no descanso e cinco ou seis indivíduos com coisas nas mãos, depois, o que deveria equivaler à perda de sentidos, nada, absolutamente nenhuma memória.
Na cena seguinte Bim está no hospital, alguns pontos em dois sítios e a cabeça ligada. Ali dormita sentado, a seus pés, a cabeça apoiada na cama. Quando percebe que Bim acordou a boca abre-se-lhe num sorriso meridional. Com a mão esguia de tamarindo, aponta Sarita Saporta, no cadeirão de lona. Ela Sorri, com os olhos muito abertos. O seu número de telefone estava perdido na carteira de Bim. E agora os seus olhos grandes sorriam e velavam por ele. Entretanto, Ali encostara-se a um canto com o ar satisfeito e nervoso que sempre tinha e sem o qual - mesmo depois daquele dia - lhe era impossível revê-lo. Do seu canto olhava-os, examinava a emotividade da aproximação distraidamente como se saboreasse a carne sumarenta de uma tâmara.
Sarita Saporta fora professora de literatura, chegara a publicar um livro polémico em que expunha a refutação do Cânone Ocidental do Bloom, parágrafo atrás de parágrafo. Agora tinha uma empresa de distribuição de legumes biológicos e tinha que desligar três telemóveis para poder estar ali. Mas o tempo não lhe fizera marcas que a desfeassem, continuava magra, um ar de miúda, a mesma expressão ferida e os olhos pretos enormes estavam impossivelmente maiores sob o cabelo acobreado e ferozmente desgrenhado que ela atara com um gancho japonês.
Desmond Dekker arrancava com Shanty Town. Os corpos assaltavam por frases como num imenso e ensurdecedor filme mudo. Aziz aproxima-se dele e estende-lhe - demasiado devagar para os olhos - um bilhetinho, diz que é de Sarita.
Sarita Saporta encosta o corrimão junto à improvisada casa de som, copo alto na mão, à altura do candeeiro de mesa cor de rosas. Os olhos viravam-se na sua direcção e os joelhos sorriam com os lábios. Bim abre o papel, amarrota-o sem o ler e põe-no no cinzeiro. Pede gin e água tónica, dois copos altos.
- Não lês os meus recados?
- Para quê, continuas a gostar de gin não continuas? Diz, sou todo ouvidos.
- Nada Bim, perguntava-me se ainda te recordarias de Itália. Lembras-te? 1979, regressavas a Milão, vinhas de Siena, via Florença, tu e o Ali e uma garrafa de Chianti. Tu a entrares no café em frente à esquadra e eles a pedirem papéis, tinha havido algo com as Brigate Rosse, recordas? O Ali não tinha os papéis em ordem e desapareceu. Os teus papéis estavam em perfeita ordem, mas zangaste-te quando quiseram que esvaziasses o cartucho das sandes. Já estavas de mau humor e quando à noite aquilo aconteceu foi porque o causaste, eu sei que não estava lá, mas o Ali contou-me, como decidiste enfrentar o enxame de vespas atraídas pelo vinagre do velho bêbado e como acabaste por cair desamparado e a sangrar da testa - de como te desancaram e perfuraram a fronte com um santo em terracota - e como ele te carregou para longe da escaramuça que desencadearas e subiu os oitocentos metros até ao táxi que vos levaria ao hospital contigo às costas. Ali contou-me tudo...
- Antes ou depois de me ficar com o dinheiro?
- Na altura. Depois disso vi-o tanto como tu, tu sabes. Mas sem ele...
- Eu sei. Era isso que me querias dizer?
- Não. Lembrei-me apenas. Ao ver-te, e de novo ao Aziz, lembrei-me de quando te salvei. De Ali, de como ele te pôde salvar para que te roubasse sem acréscimos na consciência. O teu ar indefeso...
- Tu não fazes nada por acaso.
- Quando fui ter contigo, nessa altura não precisamos de papéis...
- Éramos mais novos, muito mais novos. Eu não tinha brancas e tu não pintavas o cabelo de acaju.
- Envelheces, Bim? Perguntou Sarita Saporta esvaziando o copo. - Isso é bom na tua idade.


Afastamento
Aziz aproximara-se, encostara-se ao canto do balcão e enrolava outro, sempre com Bim ao canto do olho. Bim não conseguiu perceber se o seu cabelo ainda estava molhado ou se já fora molhado de novo. Os olhos percorreram-lhe a cara enquanto Aziz, o semblante opaco e indiferente, se inclinava para a frente e lambia o papel. Sarita Saporta fitava-o. Se os olhos dizem alguma coisa, via-o de novo nesse ano da claridade da Itália de 1979.
- Aparentemente, tens sempre quem tos faça... - Bim puxou um cigarro, inclinou-o no lábio e parou os olhos por um momento na direcção dela. Depois acendeu-o.
- Também sei envelhecer, Bim. E não, não estamos todos igualmente na merda, Sr. Direcção, não da mesma maneira. Não na mesma merda. O Aziz chegou até mim com a minha morada e um pedido de Ali. Ainda tinha a nossa morada, vê lá.
- E ...?
- Um agradecimento, depois destes anos todos. Vinte, mais? - os olhos dela eram enormes. Bim olhou para eles com frieza.
- O homem que Ali salvou em Itália já não existe, Sarita. Tu já não existes, Sarita Saporta, já não és quem pensas que és, além de que ficas ridícula a passear o Aziz. Não venceste, ninguém vence, faz apenas parte do jogo que todos sejam vencidos. Quanto a mim, não sinto senão desprezo pelo homem que me salvou. Não sou obrigado a gostar de um homem só porque me salvou a vida, não há nenhuma razão para ele pensar que possa alguma vez depender de mim. Pela minha parte, não daria um passo para salvar a sua vida.
O lábio superior de Sarita Saporta tremeu ligeiramente, sem expressão.
- Julgava que estava a falar com um miúdo que não podia ver uma data de fedelhos espancar um bêbado só para se divertirem.
- Se não era capaz de ver tapava os olhos. Vejo hoje as coisas com alguma objectividade, Sarita, penses o que pensares. E sei precisamente quem sou. Não pretendo descobrir o que é a vida só quando for tarde de mais. Bebes mais um e mudamos de agulha?
- Estranhos numa peça estranha... - disse Sarita Saporta, enquanto a mão levantou ligeiramente o copo para que Bim o enchesse.
- ... o mais estranhamente possível - concordou Bim, enchendo-lhe o copo.
- Porquê queixar-se se podemos usufruir tranquilamente do que não podemos vencer, não é? É este o teu lema, não é estupor?
- Gosto mais da ideia dos estranhos, mas também podes dizer assim.
- Não é só a tua cara que é a de um velho, Bim, pareces tão desencantado como um.
- Então, é porque deve ser verdade.
Bim ficou a vê-la indiferente, ela continuou a fitá-lo durante alguns segundos, depois deu meia volta, seguida de perto por Aziz. Bim viu-os dirigirem-se lentamente e em diagonal em direcção à escadaria. Ela também não estava mais nova, pensou sem deixar que qualquer traço menos desejado transparecesse e o apontasse.
De qualquer maneira, nunca devia ter vindo. Não fora ele o convidado, mas aquele que morrera há vinte anos e que, por um momento, quase ressuscitara.
Nessa noite não naufragaria.

domingo

Abel e Caim



Eram onze horas e Abel descera para fumar um cigarro. As pessoas entravam e saíam do edifício, viu uma mulher de casaco comprido entrar num carro e um lugar desimpedir-se mesmo à sua frente. Sorriu. Olhou para o seu carro. Nesse dia, conseguira um lugar perto do trabalho, a escassos duzentos metros, logo antes do cotovelo onde era obrigado a virar à direita e a afastar-se irreversivelmente.
Dali, dada a inclinação da rua, via perfeitamente o carro. O azul-escuro metalizado da dianteira brilhava, ainda não o tinha há um mês. Foi então que reparou no homem reclinado junto ao vidro do condutor e compreendeu que lhe estavam a roubar o carro .
Nesse mesmo dia, Caim escolhera calcorrear aquela zona da cidade, era mecânico, mas estava há três anos sem trabalho e furtava carros que ‘entregava’, um negócio limpinho e sem grande risco.

Antes mesmo de pensar, já Abel largara a gritar e corria desvairado em direcção ao carro. Que o agarrassem, que era ladrão! Surpreendido, Caim ainda hesitou. A seguir, como se nada mais fosse evidente, rasgou na direcção de Abel e agora também ele vociferava e brandia o punho cerrado.
Caim era um homem grande e forte que parecia crescer à medida que se nos aproximava. Aparvalhado, Abel titubeou e sem saber bem porquê, deu consigo abafado pelos berros do indivíduo e a correr em sentido contrário, com ele no seu encalço, cada vez maior, cada vez mais perto.
Ouvindo a gritaria e vendo aquilo, alguns dos circunstantes hesitaram. Nada lhes garantia que o perseguidor fosse o lado certo na corrida. Podia tratar-se de um inocente, quem sabe, um ladrão de comida. Alguns tiveram esta postura, poucos ainda assim. Outros, ainda menos, recordaram precisamente aquele inaugural incidente bíblico e prosseguiram, com uma sensação de Déjà vu. Os restantes rapidamente acudiram e sem que Abel pudesse abrir a boca, era atirado por terra e uma pequena multidão desatava a pontapeá-lo e a apupá-lo.


- Basta, disse Caim enquanto lhe remexia as algibeiras. - Cá estão as chaves e cá está a carteira! - E eras tu quem queria ficar-me com tudo!  - Alguém chamou a polícia?
Pôs-lhe a mão na testa e com o polegar abriu-lhe um olho, reergueu-se, sacudiu-se e com o corpo de Abel por terra entre a multidão de gente que se aglomerara, afastou-se tranquilamente em direcção ao Volvo azul-escuro metalizado enquanto as sirenes começavam a fazer-se ouvir.



segunda-feira

D.ª Efigénia



D.ª Efigénia fora duas vezes ao mercado no dia anterior, nada que a apoquentasse, nem o ar frio de Janeiro, nem a forte chuvada a meio da tarde lhe estorvavam a alegria de ir ao mercado. Durante anos, o pequeno Eduardinho fora a sua companhia de sempre. Mas desde a morte da égua, Eduardinho deixara de a acompanhar ao mercado. Na sua ciência, D.ª Efigénia fizera dele um homem a partir da data em que Cigana partira as pernas dianteiras e houvera que lhe abreviar o sofrimento.
- És capaz de o fazer, o pai ainda lhe perguntou, alguém tem que o fazer e a égua é tua. Mas não fora, estava branco como a cera, o lábio inferior tremia-lhe, os punhos cerravam-se-lhe apertados às ancas. Ouviu então a detonação, as patas vergaram-se debaixo dela e tombou de um golpe com uma pancada surda. O pai abatera-a. Um tiro só, na cabeça.
Da segunda vez que teve que regressar ao mercado, já passava bastante das três. Dª. Efigénia nunca fora ao mercado por aquelas horas do meio da tarde. Era outro mercado e não gostou tanto dos pimentos, dos melões, da salsa. Mas havia convidados para o jantar. Dª Efigénia viera das serranias de B., nos limites do distrito, com treze anos, para servir e ser educada na grande casa, naquela altura ainda proeminente e sobranceira à grande cidade. Morta a casa grande com a morte da Senhora, passara para a casa pequena da neta, um andar amplo de dois pisos e cinco quartos, a três quarteirões, onde há alguns anos ainda não havia senão descampados. Os seus usos eram já os usos da casa, a nenhum dos seus gestos faltava o jeito da Senhora, a educação da Senhora, os anos com a Senhora. A mudança para a nova casa pedira ligeiros acertos, coisas pequenas como a faca de cozinha para a fruta que o Senhor preferia se não tinha visitas, a alergia a leite do Eduardinho, o modo de preparar o café.
No dia seguinte - D.ª Efigénia pensou num golpe de frio -, não conseguia mover-se. Era como se lhe houvessem cravado um punhal e a lâmina encravelhada nas costelas lhe tolhesse o tórax, todo o lado direito, músculo a músculo, a dor remoendo implacável. Mesmo respirar era consentir na completa deflagração das costelas. Por volta das catorze e quarenta e cinco, D.ª Efigénia dava entrada no hospital. Um comprimido debaixo da língua, o soro que descia por um tubo da garrafa até ao braço direito, a injecção na nádega do mesmo lado e era recambiada, receitada, para sua casa, desde os seus treze anos, aquela família.
Ainda não eram seis da manhã quando Dª Efigénia dá de novo entrada na urgência do hospital. Depois de esperar quase duas horas pela mudança de turno na Urgência, D.ª Efigénia está agora também constipada e a tosse torna-se aflitiva, as pancadas de dor a lembrar-lhe as menstruações de menina. Quatro horas depois, o Doutor manda-a para casa com a obrigação de não fazer gestos bruscos nem pegar em pesos; trabalho nada, pelo menos durante dez dias e seis a injecções de anti-inflamatório e analgésico.
- A Sr.ª já não é uma rapariguinha, D.ª Efigénia, tem cinquenta e oito anos. Não vai poder continuar como até agora.
Mas antes que se concluíssem os dez dias soube que estava dispensada.
A casa não era grande, mas para além do Eduardo, que já tinha quinze anos, havia três filhos pequenos, o mais novo com três aninhos, carecendo da reconhecida eficiência da D.ª Efigénia, algo incompatível com o seu estado presente.
- É claro que a D.ª Efigénia compreende. O Senhor põe-lhe uma mão sobre o ombro. - Tantos anos ao serviço da família… Retira o braço e estende-lhe a mão. – Não se preocupe D.ª Efigénia, nada lhe faltará.
Eduardinho ficou a olhar para o pai durante algum tempo, depois retirou-se para o quarto tentando afastar um medo que parecia subir-lhe pelo corpo, mas que não conseguia perceber.
É claro que D.ª Efigénia compreendia ou disse que sim, talvez para tornar tudo mais indolor, o que lhe adiantava dizer que não, não percebia, que não podia, que simplesmente não conseguia compreender? Ela, que só falhara dois dias aquando da morte de sua mãe, em quinze anos de serviço, desde que a velha senhora morrera com noventa e dois anos e para ali ela viera, nascia então o Eduardinho, via agora, à medida que o corpo tolhia, desfilar diante de si um impossível carrossel de dias vazios e, de repente, pensava no Eduardinho a enchê-los, como estava grande, como fora ela quase sua mãe; em Setembro ingressaria no Colégio Militar, sentia-se orgulhosa, com um orgulho de mãe.
No dia seguinte comentou-se que ia para casa de uma irmã, que o Senhor não se poupara a despesas e que Efigénia partia com uma aposentação generosa e que partiria amanhã no comboio as onze e cinquenta. Às dez e vinte de Domingo, D.ª Efigénia dirigiu-se com o pequeno baú que compunha toda a sua bagagem e uma malinha de mão para um táxi que acabara de parar do outro lado da rua. O Senhor e a Senhora estavam à porta, ele de fato escuro, ela, a cabeça repousando-lhe no ombro e a mão tamborilando-lhe a cintura, em tons pastel e com a longa écharpe adejando acima dos joelhos.
Um minuto depois, uma carrinha Volvo de cor negra dobrou desabridamente a curva, pareceu perder o controle e, ziguezagueando, subia o passeio, enfaixando D.ª Efigénia contra o azul acinzentado do edifício em frente.
Semiconsciente, D.ª Efigénia ainda viu o condutor aproximar-se muito lentamente, num filme estranhamente mudo e abraça-la.
- Não chores, Efigénia. Não chores.
- Eduardinho…
Pegou na mão dela e apertou-a com força, levou-a aos lábios, e depois ficou a segurá-la. Ficaram assim durante um bocado, uma vez por outra Eduardinho apertava-lhe a mão, até que a mão ficou fria e mole como um peixe morto.

sábado

O avião


- O avião! O avião!
O pai parece sobreexcitado, não pára de gesticular, de apontar para cima, de abrir os braços e de fazer vvvvrrrruuuuuummmm…
A criança não se mexe, num silêncio concentrado, de veludo, olha para o dedo do pai. Segue o dedo ansioso do pai e não percebe porque que é que o dedo do pai faz aquele barulho ensurdecedor.
A mãe abraça aquele ameno rosto de filósofo.

quinta-feira

Barbas de milho


- O senhor é professor?
- Sim, efectivamente – respondeu o professor, baixando o cigarro.
- Eu sei muito, Sr. professor. Tenho 87 anos.
- Imagino, sorriu amavelmente o professor e puxou o fumo.
- Não, não imagina, Sr. professor, mas eu aprendi muito.
- Enquanto os outros, aos dez anos, iam às barbas de milho eu ia espreitar a casa de banho das meninas. Está a perceber Sr. professor? Quantos segredos aí se não resguardam, todos os segredos do mundo, Sr. professor.
- Eu sei muito, Sr. professor. Mas o que eu sei não o pode o Sr. professor ensinar, ia com os outros fumar barbas de milho.

Deixa Saudade



Nos últimos tempos, compreensivelmente, a senhora Pertes procedera como se todo o seu afecto se tivesse exaurido com o filho. Quando estava junto do marido, a sua dor calava, mesmo se o Sr. Pertes, o nariz enfronhado no jornal, apenas parecesse ignorá-la.
Naquela noite, o Sr. Pertes, que tinha negócios em Marselha, propôs-lhe irem ver o mar, mas a senhora Pertes não quis deixar o filho abandonado. O Sr. Pertes tinha dois bilhetes por cortesia da empresa, mas não insistiu. Que a mãe quisesse permanecer perto do filho não era mais do que a atitude certa, não fosse, no caso, ele ter morrido há já quase três anos. Na lápide, depois do nome e das datas, treze anos mediando as datas, apenas uma cruz despida e Deixa Saudade.
Não havia nenhuma razão para lhe lembrar algo que ela nunca esquecia. Como não havia qualquer motivo para deixar de ir a Marselha. A senhora Pertes, de qualquer modo, permaneceria perto do filho, uma atitude que estava longe de ser a certa ou mesmo a errada vista do mar.