Acorda numa cama de hospital. Tem partes do corpo ligadas, dói-lhe a cabeça, dói-lhe o corpo e não se consegue mover se não muito devagar e com grandes limitações. Não sabe como foi ali parar, não se lembra de nada a partir de certa altura, como se tudo o resto, um vasto terreno obscuro que fora porventura o do piloto automático, recusasse tomar forma consciente. Mexe a mão e acaba por perceber que com jeito pode rodar a cabeça. É nessa altura que compreende que não está sozinho, que há uma outra cama encostada à parede, do outro lado, talvez a menos de quatro metros da sua, e que o indivíduo que está nela deitado não parece dar sinal de si. Tenta erguer-se, mas depressa compreende que não consegue, deixando-se cair. Nesse momento, a porta bate e entram três enfermeiros sem que ele se aperceba até que ouve claramente três vozes. Depois, percebe outros tons de voz e enxerga a sombra de dois polícias. Fica a ouvir a conversa, a ver os procedimentos de rotina.
Houvera confrontos violentos entre manifestantes e a polícia, apercebe-se. Também percebe que tem por vizinho um desses fervorosos manifestantes, agora passivo ao ponto da inconsciência como se lhe tivessem quebrado a vontade como a um galho. A seguir, os polícias inquirem a sua situação. Ouve-os falar de si, mas mais não fica a saber porque dois maqueiros o conduzem para outra sala. Quando atravessa as portas de alumínio ainda olha o manifestante que continua sem dar sinal de vida. No corredor, vê um rapaz com pouco mais de vinte anos que se soergue da maca entre ligaduras e pragueja à passagem de um polícia que tira informações.
- … és tu, Adalberto, diz-me que és tu.
- Sou, Natália, e adivinhando o tom, passa-se alguma coisa?
- Passa-se que devias estar morto, porra. Estás morto, vem nos jornais.
- Estou a precisar de uma boa noite de sono, mas não estou morto. Os jornais, dizes tu?
- Porra, Adalberto, tu morreste. É o que diz a porra dos jornais. Que foste um dos quatro mortos que resultaram dos confrontos de ontem à noite.
- Não sei, não me lembro, mas seja como for estou a atender o telemóvel, o que quer dizer que estou vivo, estamos de acordo?
- ‘ … um dos três mortos, fulano de tal, tradutor entre nós das peças de sicrano e beltrano, faleceu hoje, às seis da madrugada, sendo a última vítima confirmada dos confrontos de ontem à noite.”
- Só me recordo de me pôr a caminho de casa e…
- Também se diz que um dos feridos tinha uma taxa de alcoolemia de 2,99 e que lhe foram encontradas pedras nos bolsos, também estás metido nisto?
- Em quê, Natália?
- Antes de mais, temos que tratar de provar que tu estás vivo.
- … 2,99, isso é bastante. Quer dizer que o gajo do lado… Pois, foi o gajo quem morreu, está mais que visto, claro…
- Quem?
- Nada. Mas, o que é isso de termos que provar a minha saúde?
- Ora, como vais tu viver e comer e ter trabalho, e… se estiveres morto?
- Natália. … como até aqui?
Passados poucos dias recordava quase tudo o que lhe acontecera naquela noite, mesmo se uma pequena mancha persistia. Ia a caminho de casa, passaria das quatro da madrugada e estava bastante bêbado. Atravessara a pé e o mais a direito possível todo o lado oriental da cidade e estaria a escassos oitocentos metros do jardim público e da escadaria íngreme que dava acesso ao edifício, numa cota mais baixa. O semáforo estava verde para os peões, era noite cerrada e não havia carros nas ruas, o que o fizera sorrir antes de cruzar a passadeira numa diagonal talvez imoderada. Nesse momento, lançado, vindo não se sabe de onde, um carro subitamente chiava, os travões a fundo, esquivando-se-lhe por pouco, e prosseguindo, aos solavancos, como se nada fosse. Antes mesmo de magicar, já ele vociferava, tão mais certo de si quanto basto toldado, erguendo o dedo médio e apostrofando a senhora mãe das cavalgaduras com certo nome comum. Poucos metros mais à frente, o carro detinha-se e as quatro portas abriam quase em simultâneo. Escusado será dizer o que não demorou a acontecer e que o deixou quase definitivamente prostrado.
Não sei se sabem o que é um bêbado, mas se sabem, sabem como se reergueu e lambendo as feridas se pôs a caminho, apenas um tanto mais lenta e dificultosamente. Ninguém circulava pelas ruas àquela hora, à excepção dos gajos como ele e dos gajos como os do carro, uma ou outra prostituta ou travesti e, quase de relance, os estranhos seres oriundos do submundo do trabalho nocturno. Recordava-se de ter ouvido um mocho, talvez uma coruja, o que era certamente mais provável. O jardim estendia-se diante dele em socalcos de cinzento macio que pareciam rivalizar com a rectitude da escadaria um pouco mais à frente, como as zonas que lhe deviam doer, mas, pareceu-lhe, não lhe doíam propriamente, e era mais como se não as sentisse. A certa altura, talvez ainda naquele sentimento misto de quem chega a casa e de quem baqueou na luta, falhara o degrau e rolara pelas escadas abaixo, estatelando-se com um baque silencioso no chão de cimento imitando grandes lajes e rodeado de bucho recentemente aparado. A partir daqui a mancha persistia, entretanto acordava no hospital.
Aquele 2,99 g/l era seu - era demasiada coincidência -, mas não percebia as pedras. Ou não lembrava. Um dia, subitamente ocorre-lhe esse gesto de bêbado com que quisera apedrejar o carro muito depois dele ter desaparecido. Talvez então tivesse metido as pedras ao bolso, é possível, num bêbado quase tudo é possível e ele estava bêbado. Acabaria por ter alta, o corpo dorido, a orelha ligada e um braço ao peito.
Não podia adivinhar que o manifestante acabaria por expirar, mas que quem morrera fora o manifestante, até aí ele já tinha chegado. Tinham-se enganado e trocado as identidades, nada de particularmente difícil numa noite como aquela. Agora também sabia que nunca tinha estado na manifestação. E logo lhe surgiu, insistente, outro pensamento, o de que se não tivesse atendido o telefone teria desaparecido para sempre; desfazer-se-ia da sua identidade e refazer-se-ia a seu gosto, sem nada e de certa maneira de novo. Sentiu que tinha perdido uma oportunidade única, mesmo se não sabia o que faria com tão singular possibilidade, sequer se conviria ao seu temperamento. Fosse como fosse, o que tinha ou não de acontecer, acontecera de facto. Ele estava vivo e Natália escrevia carta atrás de carta para os jornais a garantir a sua heróica sobrevivência, mesmo se devia ler-se alcoólica sobrevivência, e apercebia-se que a verdade, política nos termos dela, ou a meia verdade, mais correctamente, pensava ele, não era melhor notícia do que o erro. De um modo demasiado óbvio, diga-se, Natália estava a descobrir que a verdade não era notícia e que ele só voltaria a interessar aos jornais se tivesse ressuscitado, de modo algum estando normalmente vivo como já estava antes de morrer. Dois novos factos se perfilavam com que iria doravante ter que viver: estava vivo e tinha estado na manifestação.
Porque carga de água iria ele, agora, desdizer o coração de Natália? Lembrou-se do miúdo do corredor a berrar para o polícia, os cotovelos endireitando-o na maca. Tinha estado na manifestação, decidiu. Apenas esta mentira fazia jus à saga combatente de Natália. Em certas circunstâncias há que esquecer, noutras há que apagar da memória, simplesmente. Talvez porque a mentira se torne mais verdadeira do que a verdade. Talvez, apenas, porque Natália merecesse que ele tivesse estado na manifestação e essa fosse a verdade em causa.